COP30 trouxe avanço extraordinário aos afrodescendentes

Para Átila Roque, inclusão de menções a esses povos é fruto de pressão de longo prazo
Especialista defende que a agenda climática seja integrada a políticas de desenvolvimento e igualdade
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Flávia Mantovani
FOLHA DE SÃO PAULO, 03/12/2025


Defensor de uma maior participação da sociedade civil em arenas internacionais há mais de três décadas, o historiador Átila Roque considera que a COP30 deixou um saldo “extraordinário” em ao menos um aspecto: a inclusão da pauta racial nas negociações climáticas.

Diretor da Fundação Ford no Brasil, Átila participou de eventos como a Rio-92, onde a COP foi gestada, a Rio+20 e a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (2001).

Depois de acompanhar a lenta incorporação do tema racial no sistema ONU, ele celebra a inclusão inédita de menções aos povos afrodescendentes em quatro documentos oficiais da COP de Belém: sobre gênero, adaptação, transição justa e no mutirão, o mais importante texto da conferência.

Segundo o historiador, a conquista é fruto de uma pressão de longo prazo de movimentos negros urbanos e rurais do mundo todo —e que, no Brasil, contou com o apoio de movimentos indígenas.

Em entrevista à Folha, Átila afirmou que a presença recorde de povos indígenas e afrodescendentes nesta COP recolocou o debate climático “onde ele deve acontecer”.

“A agenda climática não é estritamente ecológica: ela tem que estar mais e mais integrada com as políticas de desenvolvimento e de igualdade. E, sendo uma agenda de igualdade e justiça social, em um país como o Brasil, ela é necessariamente uma agenda de igualdade racial.”

Que balanço o sr. faz da COP30, especialmente no que diz respeito à pauta da justiça racial?

É claro que poderíamos ter ido muito mais longe: as negociações climáticas poderiam ter avançado mais, estamos muito aquém do necessário. Mas, considerando as circunstâncias em que essa COP acontece, saio dela com uma sensação de que avançamos. E foi um avanço extraordinário, por várias razões.

Primeiro, porque ela acontece em um contexto de descrédito das organizações multilaterais, em que países importantíssimos para a equação da crise climática se retiraram do processo, como é o caso dos EUA. Viemos também de um histórico de outros processos recentes da ONU com participação muito restrita da sociedade civil.

Então, como esta COP ocorreu em um lugar simbólico como a Amazônia, em um país que vive sob um regime democrático, o país que acolheu a Rio 92 —a primeira grande conferência que abriu as Nações Unidas para a participação da sociedade civil—, havia uma grande expectativa de participação social neste processo de negociação climática. E ela se confirmou.

Tivemos mais de 20 mil pessoas na Cúpula dos Povos e foi a COP com a maior representação de povos indígenas e populações afrodescendentes. Isso trouxe o debate climático para onde ele deve acontecer de fato,

O debate climático não diz respeito só aos cientistas, aos especialistas, aos petroleiros ou aos produtores de energia limpa. É um debate sobre os rumos do planeta, sobre desenvolvimento, economia, e que diz respeito a todas as pessoas: àqueles 16 milhões que vivem em favelas no Brasil, aos 20% da população que não têm saneamento, aos que são mais afetados pelas ondas de calor, pelas enchentes. É um tema que diz respeito ao modo como as pessoas estão vivendo as suas vidas.

E, pela primeira vez, os principais documentos reconheceram que a crise ambiental impacta de maneira desigual os povos afrodescendentes e que eles devem ter voz nesse processo e ser reconhecidos como parte central da solução. Então, do ponto de vista da população negra, a COP30 foi um marco e uma grande vitória.

Esse reconhecimento por escrito nos documentos é simbólico ou tem consequências práticas?

Esses acordos servem como referência para decisões importantíssimas. Não são menções simbólicas: elas vão delimitar prioridades dentro das políticas climáticas. Identificar as populações afrodescendentes e indígenas como atores centrais vai ter consequências nas definições sobre onde investir em infraestrutura, onde colocar recursos.

E é justamente por essas menções não serem simbólicas que se levou tanto tempo e foi tão difícil aprová-las. Foi um processo de anos.

Quais fatores convergiram para que as menções entrassem neste ano?

A COP é um evento, acontece naquele momento que é o ápice, mas são esforços que vêm se construindo ao longo do tempo. Os movimentos afrodescendentes, tanto urbanos quanto rurais, vêm investindo muito em incluir seus pontos na agenda das negociações climáticas —e encontrando muita resistência neste processo.

Na COP da Biodiversidade de 2024, em Cali, pela primeira vez se conseguiu incorporar nas negociações o termo “afrodescendente”. Depois disso foram muitas etapas, um esforço enorme e de muita qualidade das organizações, para criar interlocuções com o mundo da diplomacia, não só no Brasil, mas nos países africanos, na Europa.

Organizações como as de mulheres negras e de quilombolas estiveram presentes em diferentes momentos: na Climate Week em Nova York, nas reuniões preparatórias para a COP, sentando-se com diplomatas e negociadores, fazendo valer seu ponto de vista. Foi um trabalho de convencimento de longo prazo.

O reconhecimento dos povos indígenas nos acordos da COP aconteceu há muito mais tempo, em 2015, na COP21 em Paris. É mais difícil incluir a questão racial nos debates sobre clima?

Sem dúvida. Ainda carregamos a força inercial do racismo, e não é uma surpresa que a mesma dinâmica que opera em outras esferas da vida opere na esfera das negociações climáticas.

Mas existe também um tema que atravessa as negociações das Nações Unidas, que é a maior dificuldade conceitual, em comparação com os povos indígenas, de delimitar essas populações. Estamos falando de um universo de grande diversidade. Não é fácil construir uma linguagem comum que responda às ansiedades e aos desafios de uma diversidade tão grande de povos diaspóricos.

Tudo isso exigiu uma vontade política muito forte, que é o que foi sendo construído ao longo desses anos, por mérito dos movimentos e das organizações.

Outro ponto —e nesse caso o Brasil teve um papel muito importante nesta COP— é que tivemos uma forte convergência entre as populações indígenas e as afrodescendentes. Houve uma aliança entre os dois movimentos, que, juntos, conseguiram colocar essa reivindicação na mesa de negociações. Foi um esforço coletivo importantíssimo de reconhecimento de identidade e de direitos.

A falta de diplomatas negros no Brasil dificulta a incorporação das demandas desses movimentos?

Esse é um tema que entristece a todos nós, que atuamos no campo internacional no Brasil, um país com maioria negra. Embora a gente reconheça o valor e a habilidade dos negociadores brasileiros, do Itamaraty, que é uma diplomacia de alto nível, infelizmente ela sofre hoje de um déficit profundo de representatividade. A diplomacia brasileira precisa se abrir e assumir essa tarefa gigantesca que é aumentar, nos seus altos cargos, a representatividade negra.

Pretos e pardos são 75% da população da Amazônia Legal (segundo o último Censo). Apesar de serem maioria, afrodescendentes são pouco visíveis no debate sobre clima na região?

Sim, inclusive por razões de definição jurídica. O reconhecimento identitário de povos indígenas tem um marco legal mais claramente definido. A luta do povo afrodescendente é mais recente e mais difícil.

Durante muito tempo havia, inclusive, uma dificuldade de reconhecer quem era e quem não era negro no Brasil. Não é que o negro na Amazônia era negado; quem era negado era o negro do Brasil, sobretudo nas áreas rurais e em um território tão marcadamente indígena como a Amazônia. Hoje, estamos em pleno movimento de visibilidade e reconhecimento, e isso impacta cada vez mais o olhar sobre a Amazônia.

Qual é o peso dos territórios quilombolas na proteção das florestas?

É nesses territórios que a floresta está mais protegida. Estudos mostram uma taxa de desmatamento muito menor nas áreas quilombolas do que no entorno. Onde tem quilombo, tem floresta de pé.

O problema é que, se você não tem sua terra reconhecida, você fica num estado de fragilidade jurídica, sujeito a todo tipo de pressão e invasão. A legalização dessas terras é uma demanda urgente.

Nós não temos muito tempo. São territórios que estão sob pressão, no contexto de uma forte demanda por terra para mineração, para o agronegócio etc. Grande parte dos assassinatos e ameaças contra defensores de direitos humanos ocorre em territórios quilombolas, indígenas e áreas em disputa. É uma questão socioambiental e social gravíssima.

Quais são os principais desafios daqui para frente na articulação entre justiça racial e clima?

Precisamos avançar no reconhecimento da agenda da equidade como agenda climática. Precisamos reconhecer que a agenda climática não é estritamente ecológica, ela tem que estar mais e mais integrada com o conjunto das políticas de desenvolvimento e de igualdade. E, sendo uma agenda de igualdade e justiça social, em um país como o Brasil, ela é necessariamente uma agenda de igualdade racial. A agenda da justiça social e racial no Brasil é, portanto, an agenda da superação da crise climática.

Átila Roque, 66
Diretor da Fundação Ford no Brasil, é historiador e mestre em ciências políticas. Foi diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais (Inesc) e diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil e da ActionAid International nos EUA.

Link: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2025/12/cop30-trouxe-avanco-extraordinario-aos-afrodescendentes-diz-diretor-da-fundacao-ford.shtml?pwgt=kch88er3zes66bi8fe91kwborqkhfvm34sdz9etfoqyxcv7m&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift

Balanço do Rio e do mar

Santo André, BA

Fotos: Atila

Hope in Brazil is reborn from the ashes of Carnival

Samba music historically embraced the celebration of black culture, telling stories of struggles, religiosity, tradition, and strength of black people

The tension between life and death opens space for imagination. The unique awareness among humans that we are going to die is an original problem from which virtually all ways of apprehending the world are born. We are desperate for meaning, a glimpse of permanence, legacy, and ancestry that would remain before and after our brief passage through life.

Perhaps, for this reason, the observation of the experience of death in the modern world is equivalent to the contemplation of human misery. The many ways to die are atrocious and selective. For most people, this is when we find ourselves most devoid of will, almost always taken by surprise, perplexity, and uncertainty. 

The way we deal with the feelings and passions surrounding the experience of death says a lot about how we recognize our belonging to common humanity. Globalized capitalism arose from the genocide of indigenous peoples, human trafficking, and the enslaving of millions of people kidnapped from Africa between the 15th and 19th centuries.

It was no different in Brazil, the destination of almost half of about 12 million enslaved people brought from the African continent to the Americas. The advance and continuation of violence – particularly against indigenous peoples, young black people in the favelas and peripheries, and women – is a devastating portrait of our collective indifference to lives marked by the structural racism that orders social and economic relations in Brazil. When news of children executed by gunmen under the bed, indigenous adolescents raped and killed; and practically daily executions of young black people in the favelas and periphery are not able to take our sleep, nor shake our state of resigned prostration, the alarm of risk that we are definitively losing our humanity should be ringing through all channels.

Amid so much bad news, the off-season Carnival of 2022 rescued our civic pride and gave us a lot of much-needed joy. Samba music historically embraced the celebration of black culture, telling stories of struggles, religiosity, tradition, and strength of black people. This year’s carnival was no different. Out of 12 leading “escolas de samba” (samba associations that organize the main carnival parade deeply rooted in popular communities), no less than nine build their show based on black thematics.

The undisputed champion, “Acadêmicos do Grande Rio,” brought a powerful plot about Exu, central orixá in African cosmologies and of enormous importance in Afro-Brazilian religious traditions, particularly in Candomblé and Umbanda. By presenting a narrative celebrating the creativity and vital potency of Exu – constantly demonized by Christian religious fundamentalism – Grande Rio provided a historic, innovative, and profoundly moving spectacle. A few times in the history of the Carnival, the title of champion was recognized so unanimously and overwhelmingly.

“Beija-Flor de Nilópolis” won second place by placing the tradition of Black thought at the center of its narrative, in all its diversity:  intellectual, artistic, and philosophical manifestations. In the best tradition of African griots, the Beija-Flor parade presented the history and essential contributions of the knowledge and experiences of black peoples to humanity. A record that has been the victim of constant erasure by the colonial tradition found its strongest manifesto in the biggest festival of samba in the world. It was breathtaking to see thousands of people singing samba music that celebrates the re-existence of black culture and the creative force of its thinkers in all areas of knowledge. Not by chance, one of the show’s main highlights was the presence of the most extraordinary lady of black writing in Brazil, Conceição Evaristo. A literature icon, she is the author of the phrase that perhaps is the synthesis of the historical moment experienced by black people: “they agreed to kill us, we agreed not to die.” 

The Carnival of 2022 was a dazzling display of the power and richness of black culture in Brazil. The symbolism of Exu on the avenue, paving the way for justice, beauty, and democracy, swallowing those who kill and poison us, gave us an impulse of hope and plenty of materials for dreaming. Those who saw it will never forget. There’s no turning back; get out of the way because we will pass.

* An expanded version of this article was published in the Nexo Journal on May 3rd, 2022.

Brasil tem oportunidade histórica para romper pacto racista

Empresas, fundações e investidores estão desafiados a criar áreas de investimento voltadas para a equidade racial

Atila Roque*

(Artigo publicado na Folha de São Paulo, em 22/12/2020)

impacto do racismo sobre a vida das pessoas negras se impôs, em 2020, como um tema inevitável de debate público em quase todas as regiões do mundo.

Aos dados que já vinham sendo coletados sobre a alta letalidade da pandemia de Covid-19 nas populações negras em países como Estados Unidos e Brasil, somou-se a onda de protestos decorrente do assassinato de George Floyd, durante uma abordagem policial no estado de Minnesota, nos EUA, em maio desse ano.

No Brasil não foi diferente. Os protestos massivos no mundo inteiro deram visibilidade a luta histórica dos negros brasileiros, para que o racismo estrutural seja considerado fator determinante das desigualdades sociais no Brasil. Como diz um manifesto recente da Coalizão Negra Por Direitos, “com racismo não há democracia”.

O retrato do país nesse aspecto, em que pese a maioria negra da população, é efetivamente desolador, e um breve olhar para a nossa realidade não deixa dúvidas: 71% das vítimas de homicídios são negras, a maioria jovens; 70,8% das pessoas em situação de pobreza são negras; apenas 5% dos cargos executivos em empresas são ocupados por negros e apenas 24% dos deputados federais se identificam como negros, para mencionar alguns dos dados existentes.

O setor privado vem sendo especialmente provocado por essa mobilização. O debate inovador trazido pelo decisão do Magazine Luiza de criar um programa de trainees exclusivo para formar lideranças negras e a tragédia do assassinato por seguranças a serviço da Rede de Supermercados Carrefour de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, aumentou a pressão por medidas concretas.

A cobrança da sociedade e, em especial, dos diversos movimentos e coletivos de jovens negros que ganharam protagonismo na última década, exige que a agenda da igualdade racial entre na equação dos negócios, ao lado dos temas mais consagrados como sustentabilidade e educação.

O avanço de um setor filantrópico privado no Brasil se fez constante –ainda que tímido em relação ao tamanho da nossa economia e em comparação com a experiência internacional– ao longo das últimas duas décadas.

Desde 1995, o Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) principal associação de investidores sociais privados do país, atua na promoção de uma cultura de doação e investimento social que esteja à altura dos desafios das desigualdades sociais no Brasil.

A agenda de justiça racial, no entanto, ainda representa uma parte ínfima desses investimentos, conforme dados coletados pelo Censo Gife, somente 2% têm foco prioritário na população negra. O lançamento recente de um Guia dos Investidores Sociais Privados (ISP) para o apoio à equidade racial, mostra o quanto o setor se viu desafiado a assumir o papel que se espera, de quem ocupa um lugar de tanto privilégio.

Empresas, fundações e investidores privados estão desafiados a criar áreas de investimento voltadas para a equidade racial, com garantia de acesso a recursos para organizações negras e soluções voltadas ao combate ao racismo estrutural. O setor privado e a sociedade têm hoje uma oportunidade histórica para romper com o pacto racista que persiste por tanto tempo no Brasil.

* É diretor regional da Fundação Ford no Brasil. Mestre em ciência política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e bacharel em História pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ex-diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil e membro do conselho diretor do GIFE.​

Infância na rua

Arquivo pessoal. Rua Barão, Praça Seca, Rio de Janeiro

Tenho memórias vívidas da rua, desde a idade mais precoce. Aprendi cedo a amar suas texturas, sons e cheiros. Mas isso nunca foi um talento natural ou uma vocação inata. Na infância a rua era um lugar de brincadeiras onde no início não estive completamente à vontade. Tinha medo dos outros meninos, não gostava de brigar, não era bom de bola e tinha uma timidez paralisante. Aos olhos dos outros meninos devia ser considerado um frouxo.

Mas gostava muito de brincar e não faltavam brincadeiras criativas naquela época. Pilotei, por exemplo, muito pneu velho pelas calçadas, joguei pião e brinquei de taco. E fui imbatível na bola de gude, chegando a amealhar uma coleção invejável conquistada nas disputas à vera nas calçadas e descampados das redondezas. Carregava com orgulho meu saco de bolas de gude bem amarrado à cintura — as de estimação cuidadosamente separadas no bolso ou na mão — como se fosse um recipiente cheio de cabeças recolhidas em uma batalha imaginária contra outras tribos. Era mesmo impiedoso nas partidas e cansei de deixar coleguinhas na lona, ou seja, com seus respectivos sacos vazios.

Mas apesar da ausência de talento natural para a vida selvagem das ruas, aprendi a me virar, violentando minha natureza recatada. Tentava ser forte, ganhar casca, aprender a controlar o frio na espinha, fingir que estava enturmado. Levei um tempo para conquistar o meu lugar e a minha turma na rua.

Fui uma criança de poucos amigos. O filho do açougueiro, vizinho do sobrado onde eu morava, era um deles. Um outro era o melhor amigo da escola primária. Com eles gostava de soltar pipa, subir em árvores e correr feito um desatinado. Quando começou a obra de saneamento e calçamento da nossa rua a minha diversão era brincar dentro das enormes manilhas, escorregar pelos barrancos de lama e barro, pular entre vergalhões de ferro. Aquilo devia ser muito perigoso, mas eu tinha uma atração irresistível por tudo que oferecia risco. Era um louco na bicicleta, desatinava ladeiras abaixo em carrinhos de rolimã, era o mais rápido no pique-pega, na corrida pelos muros e no balançar pelos galhos das árvores. Até agarrar em traseira do caminhão que descia a ladeira agarrava. Era sempre o mais imprudente de todos, como se tivesse uma proteção permanente. Dei trabalho ao meus santos e anjos protetores. Devo ter tido uma verdadeira brigada de proteção permanentemente destacada para me amparar, mesmo sem crer. Nunca quebrei um osso, embora traga uma coleção de responsa que inclui ralados diversos, cortes e perfurações, contusões e outras marcas pelo corpo.

Custei a aprender a me defender, não sem antes passar por muita humilhação e esculacho, especialmente dos garotos mais velhos. Mas aprendi. Passei a brigar na rua, rolar na terra, brigas até com hora marcada, na saída da escola, compromissos assumidos durante as desavenças em sala de aula ou no recreio. Era pontual no comparecimento a essas rusgas. Tinha resolvido não levar desaforo pra casa. E muitas vezes defendi os mais fracos das maldades dos mais fortes. Quase nunca chorava, nem quando recém nascido. Raramente chorei de dor, embora tenha tido vontade de chorar de tristeza ou melancolia. Aprendi a prender o choro e a esconder a tristeza.

Passados tantos anos dessa infância na rua, vejo que o riso sempre me foi mais fácil e solto. O humor e uma dose de auto ironia ajudou a superar a barreira da timidez e a enfrentar as situações difíceis. Gosto de rir com amigos, falar besteira, tentar não levar a vida tão a sério e viver um pouco mais leve. Um exercício que fica mais difícil a medida em que envelhecemos. Talvez por isso seja tão importante guardarmos as boas lembranças da infância e, sempre que possível, esquecer as más, ou melhor, deixá-las como reserva extraordinária de força, sempre que tivermos a impressão de que não vamos aguentar o Brasil. Como agora.

O ano em que a democracia tropeçou*

É difícil contemplar o encerramento de 2018 sem um aperto no peito e um sentimento de que chegamos ao fim de uma longa transição, que nos trouxe da ditadura para a democracia, sem plena confiança no que nos espera adiante. O aperto vem da lembrança da noite de 14 de março, quando fomos tragados pelo turbilhão de dor e indignação que se seguiu ao assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Centro do Rio de Janeiro.

O ano da graça de 2018 termina sem que saibamos quem matou e mandou matar Marielle e Anderson, com boa parte das principais lideranças política presas ou ameaçadas de prisão – inclusive o ex-presidente Lula, o atual presidente Temer, dois ex-governadores do Estado do Rio de Janeiro e muitos outros –, vítimas de investigação, conspiração ou as duas coisas juntas. E diante de nós um universo de incertezas sobre o futuro da democracia brasileira e da ordem de direitos consagrada pela Constituição de 1988. Para quem viveu esse período com uma pitada de perspectiva histórica é difícil não pensar no encerramento de um ciclo.

Tempos de renovação

Os últimos anos no Brasil foram marcados pela emergência de novos atores políticos que se fizeram notar pela defesa de seus direitos e também pelo questionamento das estruturas de poder vigentes. Foi um período em que vimos como nunca a juventude das periferias, as mulheres negras, o feminismo e as novas formas de lutas ocuparem as ruas e as redes sociais com suas demandas por uma nova política. Marielle encarnava a novidade e a renovação, convidava ao diálogo, apostava na capacidade de mudanças das instituições, acreditava que todos e todas temos o direito de viver e amar como desejamos.

A sua covarde execução e as dúvidas que pairam até hoje sobre as circunstâncias e os responsáveis pelo assassinato gerou uma onda de mobilização que vai inspirar uma nova geração de lideranças a ocupar a cena pública, o que, aliás, já vimos nas últimas eleições com o número inédito de candidatas negras, jovens e trans que foram eleitas país afora para as assembleias estaduais e o congresso federal. Um alívio para a dor e a incerteza que pesam como uma âncora que ameaça nos aprisionar à angústia do momento e à sensação amarga de que retrocedemos.

Olhando um pouco antes, as manifestações de junho de 2013, entre outras coisas, já tinham revelado o profundo déficit de representação, de liderança e  de legitimidade experimentado pelo sistema político, incluindo governos, partidos e instituições civis. Um mal-estar que cresceu com a incapacidade de o sistema político e da chamada sociedade civil organizada absorver as novas demandas.

A repressão crescente com a qual os governos passaram a receber protestos e as diferentes formas de manifestação de dissenso aumentaram cada vez mais a frustração e a revolta, especialmente da classe média e dos setores populares pressionados pela deterioração dos serviços e pela crise econômica – ao mesmo tempo em que as promessas simbolizadas pelos grandes eventos (Copa e Olimpíadas) não se realizaram. Uma parte significativa das esquerdas, dentro e fora do governo, não foi capaz de escutar e muito menos renovar visões de mundo. Encantada com o reflexo da própria imagem no poder, a esquerda naufragou junto com o velho sistema político oligárquico ao qual acreditava se contrapor.

Uma nova geração de lideranças e movimentos de direita ganhou espaço e visibilidade. Muitos se identificaram com a onda de movimentos “alt-right” (extrema direita alternativa) que florescem mundo afora, especialmente na Europa e nos EUA. Um populismo ultraconservador profundamente marcado pelo racismo, machismo e fundamentalismo religioso foi capaz de consolidar uma narrativa que capitalizou um medo difuso e ofereceu como resposta a formação de uma identidade comum contra um outro ameaçador. O resultado das eleições presidenciais de 2018 demonstrou de maneira inequívoca que essas forças vieram disputar um lugar de destaque na configuração política brasileira.

Não é uma onda passageira. Aponta para uma renovação do velho conservadorismo que se sustenta no patriarcalismo racista e violento para manter o espantoso padrão de exclusão social e desigualdades que nos caracteriza. Como vimos em outros momentos, o velho foi mais rápido em se renovar para não mudar. E o que era novo envelheceu.

Por isso acredito que, por um lado, precisamos focar naquilo que deu certo para escapar da depressão do presente; e penso muito na Mari, assim como em tantas outras lideranças jovens que inspiram e respiram. Mas também reconhecer que os formatos conhecidos e consagrados das instituições e movimentos sociais que nos trouxeram até aqui precisam rapidamente ser atualizados ou mesmo superados. A demora em reconhecer isso já nos custou muito caro. Mas a história não terminou, aliás, está apenas começando. Entre o espanto e o choque precisamos recuperar a inspiração para imaginar o mundo a partir da clave da esperança e não da frustração. Eis o maior desafio que temos pela frente. Que a democracia resista e se fortaleça em 2019.

Átila Roque é historiador, ex-diretor da Anistia Internacional no Brasil e atual diretor da Fundação Ford no Brasil

✳︎ Artigo publicado originalmente na editoria Justiça do site da Carta Capital

Sueli Carneiro

Essa coletânea fala de um Brasil que persiste e se reinventa na luta contra o racismo. É a trajetória de uma mulher de luta, uma intelectual inquieta e generosa. Sueli Carneiro respira e inspira uma raiva sagrada que alimenta uma profunda paixão pela igualdade. Não esperem encontrar nesse livro paz e conforto. Os escritos de Sueli Carneiro vêm marcados profundamente pela afirmação de uma identidade e um protagonismo que convida a dialogar com ela sobre o nosso próprio lugar de privilégio. Percorrer as suas páginas nos leva a um mergulho em uma memória de lutas e realizações, coletivas e individuais, na qual a autora cumpre um papel histórico extraordinário. Não tenha dúvidas, Sueli Carneiro é uma das maiores intelectuais do Brasil e esse livro oferece uma janela privilegiada para se pensar o mundo a partir dos temas sobre os quais ela escreve com a profundidade e a leveza somente permitida a quem sabe que o caminho percorrido vem de longe. Sueli Carneiro nos convida a ser melhores do que somos. Mais do que isso, ela acredita que podemos ser melhores do somos. E por isso agradeço.

O Abate

A palavra tem poder. Sabemos disso desde que habitamos o mundo. Poetas e escritores jogam com esse poder a favor da beleza e das paixões. Articular sentimentos e desejos, participar do debate público, expressar pêsames e votos de felicidade, descrever e reinventar o mundo, narrar trajetórias e, principalmente, afirmar cores e identidades, estão entre os usos mais virtuosos das palavras.  A língua é minha pátria, ensina Caetano Veloso, poeta. Por isso devemos sempre estar atentos à sua degradação, especialmente na esfera pública. A degradação da palavra é um sinal de que nos aproximamos perigosamente da barbárie e da desumanização.

abate

Quando aceitamos como natural que certas palavras sejam retiradas do seu contexto original e comecem a fazer parte do debate a respeito de políticas públicas significa que já começamos a perder contato com o princípio fundamental da dignidade humana, acima de qualquer coisa. Por isso não posso deixar de me espantar com a entrada na discussão sobre uso da força letal por parte das polícias da palavra “abate” para se referir a execução imediata por agentes do estado de pessoas que supostamente oferecem risco pelo porte ostensivo de armas.

O fato em si dessa discussão acontecer com ares de normalidade na tv e nos jornais –  com falas de especialistas, juristas, supremos magistrados e futuro ministro da justiça – já deveria ser objeto de profundo desgosto e repúdio por parte da sociedade. Aplicar execução sumária fora de situações de guerra é uma clara violação da constituição brasileira que não prevê pena de morte e admite o uso da força letal apenas em situações extremas (ameaça imediata a vida). Usar “abate”, uma palavra aplicada pela indústria alimentícia para processos de execução de animais – o abate de bois e frangos nos frigoríficos da linha de produção do agronegócio –, no contexto da segurança pública é imoral e grotesco.

Demonstra o quanto estamos degradando a nossa humanidade comum e cedendo terreno cada vez mais extenso à barbárie. Desumanizar as vítimas é um primeiro passo para a liberalização definitiva do extermínio de jovens negros e pobres a pretexto de garantir uma segurança seletiva e ineficaz. Policiais, moradores de favela e jovens negros serão as vítimas principais de uma medida que apenas reforça a rotina de violência que marca profundamente a relação do estado com os territórios de periferias. Não esquecer que estamos entre os países onde mais a polícia mais mata e mais morre, sendo que raramente as mortes cometidas pela polícia chegam sequer a ser investigadas.

Somente no estado do Rio de Janeiro, as ações da polícia, especialmente nas favelas e territórios periféricos, já provocaram a morte de 916 pessoas, no período de janeiro a agosto de 2018. Entre elas crianças e moradores vitimados em meio a verdadeiras operações de guerra que reduzem áreas densamente povoadas a condição de territórios inimigos que devem pagar o preço necessário de uma pacificação à fórceps que destroça corpos negros e jovens.

Precisamos cuidar das políticas e das ações, mas precisamos também cuidar das palavras. É pelas palavras que a desumanização começa. A primeira pergunta que deveria estar sendo feita às autoridades e especialistas é se cabe ao estado falar em abate de seres humanos, a não ser que sejam anuladas completamente qualquer traço de humanidade. Vamos precisar aceitar que uns são menos humanos do que outros, reduzidos a uma condição inferior até mesmos aos animais de corte, pois sequer terão os seus despojos aproveitados para a produção de ração animal.

 

Abandono

"Sombras"(2014)
“Sombras”(2014) – André Hauck

Deitado na calçada, um menino. Uma CRIANÇA. Profundamente adormecido. Apagado. Podia ser consequência da fome, da cola ou, simplesmente, tristeza. Estava VIVO. Respirava. Notei. Uma criança NEGRA, largado no tempo, desamparado. Sozinho.

O sentimento de impotência foi devastador. Ainda tentei, timidamente, falar com ele, acordá-lo. Torci para que abrisse os olhos e ao menos soubesse que alguém tinha parado e visto que ele estava ali. Imaginei oferecer algum dinheiro para que fosse comer algo e beber uma água, um suco, um refrigerante. O sol estava forte, a calçada devia estar quente, ele devia estar com fome e sede, depois de um sono, um ABANDONO, tão profundo.

Mas ele não acordou.

Contemplei o menino por mais alguns instantes e segui meu caminho. “Estou atrasado”, pensei, tentando acalmar minha consciência, “não posso perder o voo”. Mas o menino não saiu da minha cabeça, ficou ali martelando.

A profundidade de seu sono é o retrato acabado de nossa desgraça: a normatização da INDIFERENÇA, o rebaixamento de nossa própria humanidade, uma sociedade cada vez mais desprovida de compaixão e solidariedade.

EU não fui capaz de fazer nada por ele (nem por tantos que cruzam o meu caminho todos os dias). Agora sinto essa tristeza profunda, envergonhada, inútil, flutuando no espaço. Com a certeza acachapante de que perdi a oportunidade de fazer a diferença no momento raro em que UM menino se fez visível no meu caminho.

(Escrito originalmente em 12/06/2015)

Minha vida entre livros

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Para Ana Paula Lisboa e Alexandre Roque

Sou apaixonado por livros. Não consigo imaginar uma vida sem livros ou uma casa sem estantes cheias de livros. Sinto conforto quando cercado por eles, desorganizados que sejam, empilhados ou mesmo empoeirados. Tenho a impressão que nasci gostando de livros, mesmo tendo crescido em uma casa praticamente sem livros. Meu pai e minha mãe não eram leitores. Pelo menos não tenho memórias deles lendo. Se bem que minha mãe sim tinha o cuidado de sempre ler e contar histórias para mim. E me impressionava muito mais pelas histórias que contava. Algumas verdadeiras histórias de terror infantil. Não sei se repetia ou inventava, mas nunca encontrei em livros aquelas histórias de terror, quase sempre envolvendo um macaco e uma onça – onde o macaco infligia verdadeiros horrores à coitada da onça.

Não tinha nada parecido com uma biblioteca em casa. As estantes eram para exibir objetos e bibelôs, talvez um ou outro livro acidental, alguma coleção ou exemplar de enciclopédia, mas nada que se parecesse com uma estante de livros de verdade.

Os primeiros livros que lembro foram os meus. Foram sendo colocados em minhas mãos desde muito cedo. Isso é importante. Mesmo não sendo leitores, meus pais alimentaram meus hábitos de leitura, dentro dos limites econômicos restritos de nossa família, tinha sempre um dinheirinho para comprar primeiro gibis, depois coleções e livros de bolso na banca de jornal perto de casa.

A primeira lembrança de leitura que trago não foi exatamente de leitura, mas de um desejo forte de leitura, quando ganhei de presente de uma prima uma caixa de papelão lotada de gibis. Eu ainda não sabia ler, mas passava muito tempo folheando os gibis daquela caixa, olhando as figuras, imaginando o que estavam dizendo as personagens, recriando na minha cabeça os diálogos que pendiam naqueles balões acima de cada um deles. Ainda hoje tenho impressão que as minhas ideias nascem em balões flutuantes acima da minha cabeça. Quando finalmente aprendi a ler devorei em tempo recorde aquela caixa de revistas em quadrinhos. Esse foi um dos maiores prazeres que lembro de ter experimentado na minha infância. Aquela caixa de papelão foi a minha primeira biblioteca.

A partir daí comecei a somar novos exemplares à minha coleção e a fonte inesgotável era a banca de jornal que ficava no quarteirão da minha casa, na esquina da Rua Barão com a Rua Marangá, na Praça Seca, Jacarepaguá. Costumo dizer que me transformei em leitor compulsivo graças a banca de jornal. Eu era aquela criança que passava boa parte do tempo sentado ao lado do jornaleiro, lendo ali mesmo, com a sua cumplicidade, os gibis expostos para a venda. Outras vezes, como lia muito rápido, comprava, levava para a casa, lia com o máximo de cuidado para não deixar marcas e voltava para trocar por outro. Os que gostava muito ficavam na minha coleção. Eram quase sempre gibis do Tio Patinhas, Pato Donald e sua turma, os super-heróis: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Nabor (o rei dos mares), Thor, Fantasma etc. A Turma da Mônica ainda não existia.

BMonfort

Dos gibis fui para os livros de bolso. Foi com eles que aprendi a ler sem figuras, texto corrido. Uma enormidade de histórias de aventuras, espionagem, faroestes e muitas outras. As capas de alguns eram sugestivas, com mulheres fatais e histórias recheadas de sexo e vilões mal-encarados. Infelizmente não sobrou nenhum desses exemplares para que eu pudesse relembrar as histórias.

Depois, sempre na banca de jornal, já adolescente, comecei a devorar as coleções da Editora Abril, tipo, “clássicos da literatura mundial”, através das quais, em edições condensadas ou completas, entrei em contato com Alexandre Dumas, Cervantes, Mark Twain e outros autores. Ainda guardo alguns desses exemplares, quase sempre de capas duras e bonitas. Eram caros para mim e já exigiam uma certa administração orçamentária da “semanada”. Como ainda não namorava, nem bebia, não tinha mesmo onde gastar.

(A minha diversão, fora a leitura, não custava nada ou quase nada: carrinho de rolimã, pipa, bicicleta e bola de gude, pique, taco e arco e flecha. Eu era um perigo com os arcos e flechas que fazia de bambu. Mas isso é outra história.)

A primeira coleção séria que ganhei foi da minha avó Izabel, mãe do meu pai. Ela tinha na casa dela uma coleção completa de Jorge Amado, sempre que eu ia lá ficava olhando, com os olhos gulosos. Um dia ela me deu a coleção de presente. Devorei, sem parar, um atrás do outro. Ainda hoje tenho essa coleção na minha estante, agora não mais completa porque Jorge Amado ainda era vivo e produtivo naquela época e continuou assim por um bom tempo depois daquele presente, mas eu nunca mais me animei a ler os novos romances, nem comprei nenhum. Mas li os essenciais, acredito.

A leitura acabou se tornando o hábito mais constante na minha vida, seguido de perto pela música. Nunca parei de ler. Um aprendizado sem nenhuma orientação ou método – nunca gostei das aulas de literatura no colégio, nem entendi bem as classificações de escolas e autores –  cheio de ausências de obras clássicas e essenciais muitas das quais até hoje não li.

Quando entrei na faculdade, no curso de História, no IFCS/UFRJ, mesmo tendo sido aquele adolescente leitor compulsivo, senti durante muito tempo uma estranha sensação de inferioridade. Os meus colegas de curso, oriundos das boas escolas privadas da Zona Sul, alguns de famílias letradas e politizadas, vinham lidos em uma infinidade de autores (quase sempre franceses e russos) que me eram desconhecidos. Hoje penso que esses autores não deveriam ser bem vistos pela ditadura e as editoras evitavam incluí-los nas coleções de banca de jornais, sei lá. Essa é única razão que encontro para nunca ter encontrado um Proust ou um Dostoievski nas coleções de banca de jornal. Ainda hoje, às vezes, tenho umas recaídas de inferioridade diante da sapiência e erudição desses intelectuais que conseguem falar com propriedade sobre uma infinidade de autores. Mas felizmente não dura muito.

Hoje, tanto tempo e tanta coisa depois de quando acessava o mundo através da banca de jornal, tenho muito orgulho da pequena biblioteca que possuo. Modesta se comparada a outras que conheço, mas um verdadeiro Eldorado de histórias, conhecimentos e sonhos, considerando o meu ponto de partida. Minha filha diz que essa é a parte da herança que lhe cabe. Esperta, sabe que não vai ter outro bem para almejar mesmo. Acúmulo de bens nunca foi meu forte. Já há algum tempo vem se antecipando e pegando “emprestado” alguns livros. Tenho que fazer missões de busca e apreensão no seu quarto toda a vez que sinto falta de algum título. Mas fico feliz em saber que essas estantes cheias ainda terão alguma importância depois que eu não estiver mais por aqui. Sinto pena das novas gerações que não contam mais com as coleções de banca de jornais, nem os livros de bolso. Devo quase tudo que sei a eles.