Para Átila Roque, inclusão de menções a esses povos é fruto de pressão de longo prazo
Especialista defende que a agenda climática seja integrada a políticas de desenvolvimento e igualdade
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Flávia Mantovani
FOLHA DE SÃO PAULO, 03/12/2025
Defensor de uma maior participação da sociedade civil em arenas internacionais há mais de três décadas, o historiador Átila Roque considera que a COP30 deixou um saldo “extraordinário” em ao menos um aspecto: a inclusão da pauta racial nas negociações climáticas.
Diretor da Fundação Ford no Brasil, Átila participou de eventos como a Rio-92, onde a COP foi gestada, a Rio+20 e a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (2001).
Depois de acompanhar a lenta incorporação do tema racial no sistema ONU, ele celebra a inclusão inédita de menções aos povos afrodescendentes em quatro documentos oficiais da COP de Belém: sobre gênero, adaptação, transição justa e no mutirão, o mais importante texto da conferência.
Segundo o historiador, a conquista é fruto de uma pressão de longo prazo de movimentos negros urbanos e rurais do mundo todo —e que, no Brasil, contou com o apoio de movimentos indígenas.
Em entrevista à Folha, Átila afirmou que a presença recorde de povos indígenas e afrodescendentes nesta COP recolocou o debate climático “onde ele deve acontecer”.
“A agenda climática não é estritamente ecológica: ela tem que estar mais e mais integrada com as políticas de desenvolvimento e de igualdade. E, sendo uma agenda de igualdade e justiça social, em um país como o Brasil, ela é necessariamente uma agenda de igualdade racial.”
Que balanço o sr. faz da COP30, especialmente no que diz respeito à pauta da justiça racial?
É claro que poderíamos ter ido muito mais longe: as negociações climáticas poderiam ter avançado mais, estamos muito aquém do necessário. Mas, considerando as circunstâncias em que essa COP acontece, saio dela com uma sensação de que avançamos. E foi um avanço extraordinário, por várias razões.
Primeiro, porque ela acontece em um contexto de descrédito das organizações multilaterais, em que países importantíssimos para a equação da crise climática se retiraram do processo, como é o caso dos EUA. Viemos também de um histórico de outros processos recentes da ONU com participação muito restrita da sociedade civil.
Então, como esta COP ocorreu em um lugar simbólico como a Amazônia, em um país que vive sob um regime democrático, o país que acolheu a Rio 92 —a primeira grande conferência que abriu as Nações Unidas para a participação da sociedade civil—, havia uma grande expectativa de participação social neste processo de negociação climática. E ela se confirmou.
Tivemos mais de 20 mil pessoas na Cúpula dos Povos e foi a COP com a maior representação de povos indígenas e populações afrodescendentes. Isso trouxe o debate climático para onde ele deve acontecer de fato,
O debate climático não diz respeito só aos cientistas, aos especialistas, aos petroleiros ou aos produtores de energia limpa. É um debate sobre os rumos do planeta, sobre desenvolvimento, economia, e que diz respeito a todas as pessoas: àqueles 16 milhões que vivem em favelas no Brasil, aos 20% da população que não têm saneamento, aos que são mais afetados pelas ondas de calor, pelas enchentes. É um tema que diz respeito ao modo como as pessoas estão vivendo as suas vidas.
E, pela primeira vez, os principais documentos reconheceram que a crise ambiental impacta de maneira desigual os povos afrodescendentes e que eles devem ter voz nesse processo e ser reconhecidos como parte central da solução. Então, do ponto de vista da população negra, a COP30 foi um marco e uma grande vitória.
Esse reconhecimento por escrito nos documentos é simbólico ou tem consequências práticas?
Esses acordos servem como referência para decisões importantíssimas. Não são menções simbólicas: elas vão delimitar prioridades dentro das políticas climáticas. Identificar as populações afrodescendentes e indígenas como atores centrais vai ter consequências nas definições sobre onde investir em infraestrutura, onde colocar recursos.
E é justamente por essas menções não serem simbólicas que se levou tanto tempo e foi tão difícil aprová-las. Foi um processo de anos.
Quais fatores convergiram para que as menções entrassem neste ano?
A COP é um evento, acontece naquele momento que é o ápice, mas são esforços que vêm se construindo ao longo do tempo. Os movimentos afrodescendentes, tanto urbanos quanto rurais, vêm investindo muito em incluir seus pontos na agenda das negociações climáticas —e encontrando muita resistência neste processo.
Na COP da Biodiversidade de 2024, em Cali, pela primeira vez se conseguiu incorporar nas negociações o termo “afrodescendente”. Depois disso foram muitas etapas, um esforço enorme e de muita qualidade das organizações, para criar interlocuções com o mundo da diplomacia, não só no Brasil, mas nos países africanos, na Europa.
Organizações como as de mulheres negras e de quilombolas estiveram presentes em diferentes momentos: na Climate Week em Nova York, nas reuniões preparatórias para a COP, sentando-se com diplomatas e negociadores, fazendo valer seu ponto de vista. Foi um trabalho de convencimento de longo prazo.
O reconhecimento dos povos indígenas nos acordos da COP aconteceu há muito mais tempo, em 2015, na COP21 em Paris. É mais difícil incluir a questão racial nos debates sobre clima?
Sem dúvida. Ainda carregamos a força inercial do racismo, e não é uma surpresa que a mesma dinâmica que opera em outras esferas da vida opere na esfera das negociações climáticas.
Mas existe também um tema que atravessa as negociações das Nações Unidas, que é a maior dificuldade conceitual, em comparação com os povos indígenas, de delimitar essas populações. Estamos falando de um universo de grande diversidade. Não é fácil construir uma linguagem comum que responda às ansiedades e aos desafios de uma diversidade tão grande de povos diaspóricos.
Tudo isso exigiu uma vontade política muito forte, que é o que foi sendo construído ao longo desses anos, por mérito dos movimentos e das organizações.
Outro ponto —e nesse caso o Brasil teve um papel muito importante nesta COP— é que tivemos uma forte convergência entre as populações indígenas e as afrodescendentes. Houve uma aliança entre os dois movimentos, que, juntos, conseguiram colocar essa reivindicação na mesa de negociações. Foi um esforço coletivo importantíssimo de reconhecimento de identidade e de direitos.
A falta de diplomatas negros no Brasil dificulta a incorporação das demandas desses movimentos?
Esse é um tema que entristece a todos nós, que atuamos no campo internacional no Brasil, um país com maioria negra. Embora a gente reconheça o valor e a habilidade dos negociadores brasileiros, do Itamaraty, que é uma diplomacia de alto nível, infelizmente ela sofre hoje de um déficit profundo de representatividade. A diplomacia brasileira precisa se abrir e assumir essa tarefa gigantesca que é aumentar, nos seus altos cargos, a representatividade negra.
Pretos e pardos são 75% da população da Amazônia Legal (segundo o último Censo). Apesar de serem maioria, afrodescendentes são pouco visíveis no debate sobre clima na região?
Sim, inclusive por razões de definição jurídica. O reconhecimento identitário de povos indígenas tem um marco legal mais claramente definido. A luta do povo afrodescendente é mais recente e mais difícil.
Durante muito tempo havia, inclusive, uma dificuldade de reconhecer quem era e quem não era negro no Brasil. Não é que o negro na Amazônia era negado; quem era negado era o negro do Brasil, sobretudo nas áreas rurais e em um território tão marcadamente indígena como a Amazônia. Hoje, estamos em pleno movimento de visibilidade e reconhecimento, e isso impacta cada vez mais o olhar sobre a Amazônia.
Qual é o peso dos territórios quilombolas na proteção das florestas?
É nesses territórios que a floresta está mais protegida. Estudos mostram uma taxa de desmatamento muito menor nas áreas quilombolas do que no entorno. Onde tem quilombo, tem floresta de pé.
O problema é que, se você não tem sua terra reconhecida, você fica num estado de fragilidade jurídica, sujeito a todo tipo de pressão e invasão. A legalização dessas terras é uma demanda urgente.
Nós não temos muito tempo. São territórios que estão sob pressão, no contexto de uma forte demanda por terra para mineração, para o agronegócio etc. Grande parte dos assassinatos e ameaças contra defensores de direitos humanos ocorre em territórios quilombolas, indígenas e áreas em disputa. É uma questão socioambiental e social gravíssima.
Quais são os principais desafios daqui para frente na articulação entre justiça racial e clima?
Precisamos avançar no reconhecimento da agenda da equidade como agenda climática. Precisamos reconhecer que a agenda climática não é estritamente ecológica, ela tem que estar mais e mais integrada com o conjunto das políticas de desenvolvimento e de igualdade. E, sendo uma agenda de igualdade e justiça social, em um país como o Brasil, ela é necessariamente uma agenda de igualdade racial. A agenda da justiça social e racial no Brasil é, portanto, an agenda da superação da crise climática.
Átila Roque, 66
Diretor da Fundação Ford no Brasil, é historiador e mestre em ciências políticas. Foi diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais (Inesc) e diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil e da ActionAid International nos EUA.





















