O Abate

A palavra tem poder. Sabemos disso desde que habitamos o mundo. Poetas e escritores jogam com esse poder a favor da beleza e das paixões. Articular sentimentos e desejos, participar do debate público, expressar pêsames e votos de felicidade, descrever e reinventar o mundo, narrar trajetórias e, principalmente, afirmar cores e identidades, estão entre os usos mais virtuosos das palavras.  A língua é minha pátria, ensina Caetano Veloso, poeta. Por isso devemos sempre estar atentos à sua degradação, especialmente na esfera pública. A degradação da palavra é um sinal de que nos aproximamos perigosamente da barbárie e da desumanização.

abate

Quando aceitamos como natural que certas palavras sejam retiradas do seu contexto original e comecem a fazer parte do debate a respeito de políticas públicas significa que já começamos a perder contato com o princípio fundamental da dignidade humana, acima de qualquer coisa. Por isso não posso deixar de me espantar com a entrada na discussão sobre uso da força letal por parte das polícias da palavra “abate” para se referir a execução imediata por agentes do estado de pessoas que supostamente oferecem risco pelo porte ostensivo de armas.

O fato em si dessa discussão acontecer com ares de normalidade na tv e nos jornais –  com falas de especialistas, juristas, supremos magistrados e futuro ministro da justiça – já deveria ser objeto de profundo desgosto e repúdio por parte da sociedade. Aplicar execução sumária fora de situações de guerra é uma clara violação da constituição brasileira que não prevê pena de morte e admite o uso da força letal apenas em situações extremas (ameaça imediata a vida). Usar “abate”, uma palavra aplicada pela indústria alimentícia para processos de execução de animais – o abate de bois e frangos nos frigoríficos da linha de produção do agronegócio –, no contexto da segurança pública é imoral e grotesco.

Demonstra o quanto estamos degradando a nossa humanidade comum e cedendo terreno cada vez mais extenso à barbárie. Desumanizar as vítimas é um primeiro passo para a liberalização definitiva do extermínio de jovens negros e pobres a pretexto de garantir uma segurança seletiva e ineficaz. Policiais, moradores de favela e jovens negros serão as vítimas principais de uma medida que apenas reforça a rotina de violência que marca profundamente a relação do estado com os territórios de periferias. Não esquecer que estamos entre os países onde mais a polícia mais mata e mais morre, sendo que raramente as mortes cometidas pela polícia chegam sequer a ser investigadas.

Somente no estado do Rio de Janeiro, as ações da polícia, especialmente nas favelas e territórios periféricos, já provocaram a morte de 916 pessoas, no período de janeiro a agosto de 2018. Entre elas crianças e moradores vitimados em meio a verdadeiras operações de guerra que reduzem áreas densamente povoadas a condição de territórios inimigos que devem pagar o preço necessário de uma pacificação à fórceps que destroça corpos negros e jovens.

Precisamos cuidar das políticas e das ações, mas precisamos também cuidar das palavras. É pelas palavras que a desumanização começa. A primeira pergunta que deveria estar sendo feita às autoridades e especialistas é se cabe ao estado falar em abate de seres humanos, a não ser que sejam anuladas completamente qualquer traço de humanidade. Vamos precisar aceitar que uns são menos humanos do que outros, reduzidos a uma condição inferior até mesmos aos animais de corte, pois sequer terão os seus despojos aproveitados para a produção de ração animal.