Minha vida entre livros

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Para Ana Paula Lisboa e Alexandre Roque

Sou apaixonado por livros. Não consigo imaginar uma vida sem livros ou uma casa sem estantes cheias de livros. Sinto conforto quando cercado por eles, desorganizados que sejam, empilhados ou mesmo empoeirados. Tenho a impressão que nasci gostando de livros, mesmo tendo crescido em uma casa praticamente sem livros. Meu pai e minha mãe não eram leitores. Pelo menos não tenho memórias deles lendo. Se bem que minha mãe sim tinha o cuidado de sempre ler e contar histórias para mim. E me impressionava muito mais pelas histórias que contava. Algumas verdadeiras histórias de terror infantil. Não sei se repetia ou inventava, mas nunca encontrei em livros aquelas histórias de terror, quase sempre envolvendo um macaco e uma onça – onde o macaco infligia verdadeiros horrores à coitada da onça.

Não tinha nada parecido com uma biblioteca em casa. As estantes eram para exibir objetos e bibelôs, talvez um ou outro livro acidental, alguma coleção ou exemplar de enciclopédia, mas nada que se parecesse com uma estante de livros de verdade.

Os primeiros livros que lembro foram os meus. Foram sendo colocados em minhas mãos desde muito cedo. Isso é importante. Mesmo não sendo leitores, meus pais alimentaram meus hábitos de leitura, dentro dos limites econômicos restritos de nossa família, tinha sempre um dinheirinho para comprar primeiro gibis, depois coleções e livros de bolso na banca de jornal perto de casa.

A primeira lembrança de leitura que trago não foi exatamente de leitura, mas de um desejo forte de leitura, quando ganhei de presente de uma prima uma caixa de papelão lotada de gibis. Eu ainda não sabia ler, mas passava muito tempo folheando os gibis daquela caixa, olhando as figuras, imaginando o que estavam dizendo as personagens, recriando na minha cabeça os diálogos que pendiam naqueles balões acima de cada um deles. Ainda hoje tenho impressão que as minhas ideias nascem em balões flutuantes acima da minha cabeça. Quando finalmente aprendi a ler devorei em tempo recorde aquela caixa de revistas em quadrinhos. Esse foi um dos maiores prazeres que lembro de ter experimentado na minha infância. Aquela caixa de papelão foi a minha primeira biblioteca.

A partir daí comecei a somar novos exemplares à minha coleção e a fonte inesgotável era a banca de jornal que ficava no quarteirão da minha casa, na esquina da Rua Barão com a Rua Marangá, na Praça Seca, Jacarepaguá. Costumo dizer que me transformei em leitor compulsivo graças a banca de jornal. Eu era aquela criança que passava boa parte do tempo sentado ao lado do jornaleiro, lendo ali mesmo, com a sua cumplicidade, os gibis expostos para a venda. Outras vezes, como lia muito rápido, comprava, levava para a casa, lia com o máximo de cuidado para não deixar marcas e voltava para trocar por outro. Os que gostava muito ficavam na minha coleção. Eram quase sempre gibis do Tio Patinhas, Pato Donald e sua turma, os super-heróis: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Nabor (o rei dos mares), Thor, Fantasma etc. A Turma da Mônica ainda não existia.

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Dos gibis fui para os livros de bolso. Foi com eles que aprendi a ler sem figuras, texto corrido. Uma enormidade de histórias de aventuras, espionagem, faroestes e muitas outras. As capas de alguns eram sugestivas, com mulheres fatais e histórias recheadas de sexo e vilões mal-encarados. Infelizmente não sobrou nenhum desses exemplares para que eu pudesse relembrar as histórias.

Depois, sempre na banca de jornal, já adolescente, comecei a devorar as coleções da Editora Abril, tipo, “clássicos da literatura mundial”, através das quais, em edições condensadas ou completas, entrei em contato com Alexandre Dumas, Cervantes, Mark Twain e outros autores. Ainda guardo alguns desses exemplares, quase sempre de capas duras e bonitas. Eram caros para mim e já exigiam uma certa administração orçamentária da “semanada”. Como ainda não namorava, nem bebia, não tinha mesmo onde gastar.

(A minha diversão, fora a leitura, não custava nada ou quase nada: carrinho de rolimã, pipa, bicicleta e bola de gude, pique, taco e arco e flecha. Eu era um perigo com os arcos e flechas que fazia de bambu. Mas isso é outra história.)

A primeira coleção séria que ganhei foi da minha avó Izabel, mãe do meu pai. Ela tinha na casa dela uma coleção completa de Jorge Amado, sempre que eu ia lá ficava olhando, com os olhos gulosos. Um dia ela me deu a coleção de presente. Devorei, sem parar, um atrás do outro. Ainda hoje tenho essa coleção na minha estante, agora não mais completa porque Jorge Amado ainda era vivo e produtivo naquela época e continuou assim por um bom tempo depois daquele presente, mas eu nunca mais me animei a ler os novos romances, nem comprei nenhum. Mas li os essenciais, acredito.

A leitura acabou se tornando o hábito mais constante na minha vida, seguido de perto pela música. Nunca parei de ler. Um aprendizado sem nenhuma orientação ou método – nunca gostei das aulas de literatura no colégio, nem entendi bem as classificações de escolas e autores –  cheio de ausências de obras clássicas e essenciais muitas das quais até hoje não li.

Quando entrei na faculdade, no curso de História, no IFCS/UFRJ, mesmo tendo sido aquele adolescente leitor compulsivo, senti durante muito tempo uma estranha sensação de inferioridade. Os meus colegas de curso, oriundos das boas escolas privadas da Zona Sul, alguns de famílias letradas e politizadas, vinham lidos em uma infinidade de autores (quase sempre franceses e russos) que me eram desconhecidos. Hoje penso que esses autores não deveriam ser bem vistos pela ditadura e as editoras evitavam incluí-los nas coleções de banca de jornais, sei lá. Essa é única razão que encontro para nunca ter encontrado um Proust ou um Dostoievski nas coleções de banca de jornal. Ainda hoje, às vezes, tenho umas recaídas de inferioridade diante da sapiência e erudição desses intelectuais que conseguem falar com propriedade sobre uma infinidade de autores. Mas felizmente não dura muito.

Hoje, tanto tempo e tanta coisa depois de quando acessava o mundo através da banca de jornal, tenho muito orgulho da pequena biblioteca que possuo. Modesta se comparada a outras que conheço, mas um verdadeiro Eldorado de histórias, conhecimentos e sonhos, considerando o meu ponto de partida. Minha filha diz que essa é a parte da herança que lhe cabe. Esperta, sabe que não vai ter outro bem para almejar mesmo. Acúmulo de bens nunca foi meu forte. Já há algum tempo vem se antecipando e pegando “emprestado” alguns livros. Tenho que fazer missões de busca e apreensão no seu quarto toda a vez que sinto falta de algum título. Mas fico feliz em saber que essas estantes cheias ainda terão alguma importância depois que eu não estiver mais por aqui. Sinto pena das novas gerações que não contam mais com as coleções de banca de jornais, nem os livros de bolso. Devo quase tudo que sei a eles.

Autor: Atila Roque

Historiador e Cientista Político

3 comentários em “Minha vida entre livros”

  1. Dá pra te ler nesse texto, amigo. Tambem aprendi a le em gibis que meu pai trazia de Porto Alegre. A gente chamava de “revistinha”. Aprendi a ler sozinha, enquanto minhas irmas eram obrigadas a ler alto para mim. Minha casa tinha livros, principalmente coleções que meu pai comprava pelo correio. Obras completas de Vitor Hugo e Dante Alighieri. E o Tesouro da Juventude, o Mundo da Criança.. e as enciclopedias. É assunto de piada até hoje meu costume de, pequena, ir para o banheiro com uma enciclopedia no colo. E a paixão de formar a primeira biblioteca! Seja indo ao supermercado com meu pai e sempre conseguindo um livro de bolso, seja pedindo de presente de natal dinheiro para ir naquela livraria que ficava no teto do Mercado Público de Porto Alegre para comprar Cortázar e outras maravilhas. Depois, as férias na Argentina, quando minha irmã foi morar lá, me permitindo o acesso a um mundo de livros que a ditadura proibira no Brasil. Ah! Muitas histórias. Acompanho tua biblioteca há décadas. Sei o cheiro que ela tem. Uma das facetas de nossa amizade, com certeza, está nos livros. Incluindo a paixão pelos romances policiais (os lindos olhos verdes e a barriga de tanquinho de Brigitte Montfort foi só o aperetivo). Amigo querido, obrigada pela leitura tão doce nesse começo de manhã. Somos de uma geração que lê e se cerca de livros. Todo dia quando chego no trabalho e vou embora no final da tarde corto meu caminho para o estacionamento por um corredor estreito que circunda a biblioteca do Senado. Sinto o cheiro dos livros guardados, milhares. É o cheiro do sotão da casa de meus avós italianos. Que sorte a minha, o cheiro dos livros me trazer recordações da infância. Na casa de meus avós alemães, bem humilde, os livros eram escritos em alemão gótico. Minha mãe acha que eram romances policiais. Segue a vida. Meu filho cresceu rodeado de livros e reclama da poeira, que lhe dá rinite. Não gosta de ler. Quem sabe Caê, que nasce em setembro, se apaixona pelos livros da vó? Beijos e bom dia, meu amigo Atila.

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  2. Mainha, quanto tempo passamos juntos entre livros, gibis e quadrinhos. Ah, quadrinhos são um capítulo a parte. A turma impagável do Chiclete com Banana. Tenho uma pilha lá na estante. Sempre volto a eles. Angeli, Laerte e Glauco ainda são insuperáveis. Lembra quando você selecionava as melhores tiras e mandava pelo correio para Tóquio? Muito amor. E quantas fantasias com a Brigitte Montfort. Sem falar que tinha a mãe dela, a Giselle Montfort, “a espiã nua que abalou Paris”. Noutro dia quase comprei um pacote de livros de bolsos bem empoeirados, inclusive faroestes, no Mercado Livre. Mas achei que corria o risco de apanhar em casa quando aquele pacote chegasse…

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  3. Átila,
    Que texto maravilhoso!
    Eu, do meu lugar, como professora de literatura, posso compartilhar muitas das suas vivências. Trajetórias muito semelhantes….
    Só não era a banca de jornal que me alimentava! Era tudo emprestado! Também meus pais não tinham recursos! Pegava emprestado com todo mundo, primos, colegas de escola, colegas do bairro: gibis, livros de bolso do “velho oeste” (diga-se de passagem, escritos por brasileiros), classicos da Disney – adorava o pateta, a Florisbela e o prof. Pardal. Ah! Ficava muito irritada com o tio Patinhas – sem querer já estava entendendo o mundo.
    Confesso: o que me encantava mesmo eram as histórias de amor, impossível, é claro! Nossa! Como derramei lágrimas no meu travesseiro!
    Aí, depois a coisa ficou séria, Alencar, Machado, Clarice Lispector, Dalton Trevisan, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Cecília Meireles, José Mauro de Vasconcelos – que saudade de “Rosinha, minha canoa”, sei que nunca mais o lerei com os olhos ingênuos da minha juventude.
    Ah! Não posso esquecer do bom e velho “Fernão capelo gaivota” e do “Pequeno príncipe”.
    Acho que foi isso tudo que me fez optar por fazer jornalismo e depois mudar pra Letras. E aí a história ficou mais séria ainda.
    Se quiser e puder, meu grande e velho amigo, podemos partilhar muito nessa área. Sugiro a você, do velho Jorge Amado, se é que ainda não leu, “A morte e a morte de Quincas berro d’água”. Desse tenho orgulho, porque ganhei de presente de um mestre, tradutor de Dostoiévski no Brasil, meu mentor e amigo, responsável pela minha formação. Muitas histórias, velhas e novas….

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