Hope in Brazil is reborn from the ashes of Carnival

Samba music historically embraced the celebration of black culture, telling stories of struggles, religiosity, tradition, and strength of black people

The tension between life and death opens space for imagination. The unique awareness among humans that we are going to die is an original problem from which virtually all ways of apprehending the world are born. We are desperate for meaning, a glimpse of permanence, legacy, and ancestry that would remain before and after our brief passage through life.

Perhaps, for this reason, the observation of the experience of death in the modern world is equivalent to the contemplation of human misery. The many ways to die are atrocious and selective. For most people, this is when we find ourselves most devoid of will, almost always taken by surprise, perplexity, and uncertainty. 

The way we deal with the feelings and passions surrounding the experience of death says a lot about how we recognize our belonging to common humanity. Globalized capitalism arose from the genocide of indigenous peoples, human trafficking, and the enslaving of millions of people kidnapped from Africa between the 15th and 19th centuries.

It was no different in Brazil, the destination of almost half of about 12 million enslaved people brought from the African continent to the Americas. The advance and continuation of violence – particularly against indigenous peoples, young black people in the favelas and peripheries, and women – is a devastating portrait of our collective indifference to lives marked by the structural racism that orders social and economic relations in Brazil. When news of children executed by gunmen under the bed, indigenous adolescents raped and killed; and practically daily executions of young black people in the favelas and periphery are not able to take our sleep, nor shake our state of resigned prostration, the alarm of risk that we are definitively losing our humanity should be ringing through all channels.

Amid so much bad news, the off-season Carnival of 2022 rescued our civic pride and gave us a lot of much-needed joy. Samba music historically embraced the celebration of black culture, telling stories of struggles, religiosity, tradition, and strength of black people. This year’s carnival was no different. Out of 12 leading “escolas de samba” (samba associations that organize the main carnival parade deeply rooted in popular communities), no less than nine build their show based on black thematics.

The undisputed champion, “Acadêmicos do Grande Rio,” brought a powerful plot about Exu, central orixá in African cosmologies and of enormous importance in Afro-Brazilian religious traditions, particularly in Candomblé and Umbanda. By presenting a narrative celebrating the creativity and vital potency of Exu – constantly demonized by Christian religious fundamentalism – Grande Rio provided a historic, innovative, and profoundly moving spectacle. A few times in the history of the Carnival, the title of champion was recognized so unanimously and overwhelmingly.

“Beija-Flor de Nilópolis” won second place by placing the tradition of Black thought at the center of its narrative, in all its diversity:  intellectual, artistic, and philosophical manifestations. In the best tradition of African griots, the Beija-Flor parade presented the history and essential contributions of the knowledge and experiences of black peoples to humanity. A record that has been the victim of constant erasure by the colonial tradition found its strongest manifesto in the biggest festival of samba in the world. It was breathtaking to see thousands of people singing samba music that celebrates the re-existence of black culture and the creative force of its thinkers in all areas of knowledge. Not by chance, one of the show’s main highlights was the presence of the most extraordinary lady of black writing in Brazil, Conceição Evaristo. A literature icon, she is the author of the phrase that perhaps is the synthesis of the historical moment experienced by black people: “they agreed to kill us, we agreed not to die.” 

The Carnival of 2022 was a dazzling display of the power and richness of black culture in Brazil. The symbolism of Exu on the avenue, paving the way for justice, beauty, and democracy, swallowing those who kill and poison us, gave us an impulse of hope and plenty of materials for dreaming. Those who saw it will never forget. There’s no turning back; get out of the way because we will pass.

* An expanded version of this article was published in the Nexo Journal on May 3rd, 2022.

Brasil tem oportunidade histórica para romper pacto racista

Empresas, fundações e investidores estão desafiados a criar áreas de investimento voltadas para a equidade racial

Atila Roque*

(Artigo publicado na Folha de São Paulo, em 22/12/2020)

impacto do racismo sobre a vida das pessoas negras se impôs, em 2020, como um tema inevitável de debate público em quase todas as regiões do mundo.

Aos dados que já vinham sendo coletados sobre a alta letalidade da pandemia de Covid-19 nas populações negras em países como Estados Unidos e Brasil, somou-se a onda de protestos decorrente do assassinato de George Floyd, durante uma abordagem policial no estado de Minnesota, nos EUA, em maio desse ano.

No Brasil não foi diferente. Os protestos massivos no mundo inteiro deram visibilidade a luta histórica dos negros brasileiros, para que o racismo estrutural seja considerado fator determinante das desigualdades sociais no Brasil. Como diz um manifesto recente da Coalizão Negra Por Direitos, “com racismo não há democracia”.

O retrato do país nesse aspecto, em que pese a maioria negra da população, é efetivamente desolador, e um breve olhar para a nossa realidade não deixa dúvidas: 71% das vítimas de homicídios são negras, a maioria jovens; 70,8% das pessoas em situação de pobreza são negras; apenas 5% dos cargos executivos em empresas são ocupados por negros e apenas 24% dos deputados federais se identificam como negros, para mencionar alguns dos dados existentes.

O setor privado vem sendo especialmente provocado por essa mobilização. O debate inovador trazido pelo decisão do Magazine Luiza de criar um programa de trainees exclusivo para formar lideranças negras e a tragédia do assassinato por seguranças a serviço da Rede de Supermercados Carrefour de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, aumentou a pressão por medidas concretas.

A cobrança da sociedade e, em especial, dos diversos movimentos e coletivos de jovens negros que ganharam protagonismo na última década, exige que a agenda da igualdade racial entre na equação dos negócios, ao lado dos temas mais consagrados como sustentabilidade e educação.

O avanço de um setor filantrópico privado no Brasil se fez constante –ainda que tímido em relação ao tamanho da nossa economia e em comparação com a experiência internacional– ao longo das últimas duas décadas.

Desde 1995, o Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas) principal associação de investidores sociais privados do país, atua na promoção de uma cultura de doação e investimento social que esteja à altura dos desafios das desigualdades sociais no Brasil.

A agenda de justiça racial, no entanto, ainda representa uma parte ínfima desses investimentos, conforme dados coletados pelo Censo Gife, somente 2% têm foco prioritário na população negra. O lançamento recente de um Guia dos Investidores Sociais Privados (ISP) para o apoio à equidade racial, mostra o quanto o setor se viu desafiado a assumir o papel que se espera, de quem ocupa um lugar de tanto privilégio.

Empresas, fundações e investidores privados estão desafiados a criar áreas de investimento voltadas para a equidade racial, com garantia de acesso a recursos para organizações negras e soluções voltadas ao combate ao racismo estrutural. O setor privado e a sociedade têm hoje uma oportunidade histórica para romper com o pacto racista que persiste por tanto tempo no Brasil.

* É diretor regional da Fundação Ford no Brasil. Mestre em ciência política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e bacharel em História pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ex-diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil e membro do conselho diretor do GIFE.​

Infância na rua

Arquivo pessoal. Rua Barão, Praça Seca, Rio de Janeiro

Tenho memórias vívidas da rua, desde a idade mais precoce. Aprendi cedo a amar suas texturas, sons e cheiros. Mas isso nunca foi um talento natural ou uma vocação inata. Na infância a rua era um lugar de brincadeiras onde no início não estive completamente à vontade. Tinha medo dos outros meninos, não gostava de brigar, não era bom de bola e tinha uma timidez paralisante. Aos olhos dos outros meninos devia ser considerado um frouxo.

Mas gostava muito de brincar e não faltavam brincadeiras criativas naquela época. Pilotei, por exemplo, muito pneu velho pelas calçadas, joguei pião e brinquei de taco. E fui imbatível na bola de gude, chegando a amealhar uma coleção invejável conquistada nas disputas à vera nas calçadas e descampados das redondezas. Carregava com orgulho meu saco de bolas de gude bem amarrado à cintura — as de estimação cuidadosamente separadas no bolso ou na mão — como se fosse um recipiente cheio de cabeças recolhidas em uma batalha imaginária contra outras tribos. Era mesmo impiedoso nas partidas e cansei de deixar coleguinhas na lona, ou seja, com seus respectivos sacos vazios.

Mas apesar da ausência de talento natural para a vida selvagem das ruas, aprendi a me virar, violentando minha natureza recatada. Tentava ser forte, ganhar casca, aprender a controlar o frio na espinha, fingir que estava enturmado. Levei um tempo para conquistar o meu lugar e a minha turma na rua.

Fui uma criança de poucos amigos. O filho do açougueiro, vizinho do sobrado onde eu morava, era um deles. Um outro era o melhor amigo da escola primária. Com eles gostava de soltar pipa, subir em árvores e correr feito um desatinado. Quando começou a obra de saneamento e calçamento da nossa rua a minha diversão era brincar dentro das enormes manilhas, escorregar pelos barrancos de lama e barro, pular entre vergalhões de ferro. Aquilo devia ser muito perigoso, mas eu tinha uma atração irresistível por tudo que oferecia risco. Era um louco na bicicleta, desatinava ladeiras abaixo em carrinhos de rolimã, era o mais rápido no pique-pega, na corrida pelos muros e no balançar pelos galhos das árvores. Até agarrar em traseira do caminhão que descia a ladeira agarrava. Era sempre o mais imprudente de todos, como se tivesse uma proteção permanente. Dei trabalho ao meus santos e anjos protetores. Devo ter tido uma verdadeira brigada de proteção permanentemente destacada para me amparar, mesmo sem crer. Nunca quebrei um osso, embora traga uma coleção de responsa que inclui ralados diversos, cortes e perfurações, contusões e outras marcas pelo corpo.

Custei a aprender a me defender, não sem antes passar por muita humilhação e esculacho, especialmente dos garotos mais velhos. Mas aprendi. Passei a brigar na rua, rolar na terra, brigas até com hora marcada, na saída da escola, compromissos assumidos durante as desavenças em sala de aula ou no recreio. Era pontual no comparecimento a essas rusgas. Tinha resolvido não levar desaforo pra casa. E muitas vezes defendi os mais fracos das maldades dos mais fortes. Quase nunca chorava, nem quando recém nascido. Raramente chorei de dor, embora tenha tido vontade de chorar de tristeza ou melancolia. Aprendi a prender o choro e a esconder a tristeza.

Passados tantos anos dessa infância na rua, vejo que o riso sempre me foi mais fácil e solto. O humor e uma dose de auto ironia ajudou a superar a barreira da timidez e a enfrentar as situações difíceis. Gosto de rir com amigos, falar besteira, tentar não levar a vida tão a sério e viver um pouco mais leve. Um exercício que fica mais difícil a medida em que envelhecemos. Talvez por isso seja tão importante guardarmos as boas lembranças da infância e, sempre que possível, esquecer as más, ou melhor, deixá-las como reserva extraordinária de força, sempre que tivermos a impressão de que não vamos aguentar o Brasil. Como agora.

O ano em que a democracia tropeçou*

É difícil contemplar o encerramento de 2018 sem um aperto no peito e um sentimento de que chegamos ao fim de uma longa transição, que nos trouxe da ditadura para a democracia, sem plena confiança no que nos espera adiante. O aperto vem da lembrança da noite de 14 de março, quando fomos tragados pelo turbilhão de dor e indignação que se seguiu ao assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no Centro do Rio de Janeiro.

O ano da graça de 2018 termina sem que saibamos quem matou e mandou matar Marielle e Anderson, com boa parte das principais lideranças política presas ou ameaçadas de prisão – inclusive o ex-presidente Lula, o atual presidente Temer, dois ex-governadores do Estado do Rio de Janeiro e muitos outros –, vítimas de investigação, conspiração ou as duas coisas juntas. E diante de nós um universo de incertezas sobre o futuro da democracia brasileira e da ordem de direitos consagrada pela Constituição de 1988. Para quem viveu esse período com uma pitada de perspectiva histórica é difícil não pensar no encerramento de um ciclo.

Tempos de renovação

Os últimos anos no Brasil foram marcados pela emergência de novos atores políticos que se fizeram notar pela defesa de seus direitos e também pelo questionamento das estruturas de poder vigentes. Foi um período em que vimos como nunca a juventude das periferias, as mulheres negras, o feminismo e as novas formas de lutas ocuparem as ruas e as redes sociais com suas demandas por uma nova política. Marielle encarnava a novidade e a renovação, convidava ao diálogo, apostava na capacidade de mudanças das instituições, acreditava que todos e todas temos o direito de viver e amar como desejamos.

A sua covarde execução e as dúvidas que pairam até hoje sobre as circunstâncias e os responsáveis pelo assassinato gerou uma onda de mobilização que vai inspirar uma nova geração de lideranças a ocupar a cena pública, o que, aliás, já vimos nas últimas eleições com o número inédito de candidatas negras, jovens e trans que foram eleitas país afora para as assembleias estaduais e o congresso federal. Um alívio para a dor e a incerteza que pesam como uma âncora que ameaça nos aprisionar à angústia do momento e à sensação amarga de que retrocedemos.

Olhando um pouco antes, as manifestações de junho de 2013, entre outras coisas, já tinham revelado o profundo déficit de representação, de liderança e  de legitimidade experimentado pelo sistema político, incluindo governos, partidos e instituições civis. Um mal-estar que cresceu com a incapacidade de o sistema político e da chamada sociedade civil organizada absorver as novas demandas.

A repressão crescente com a qual os governos passaram a receber protestos e as diferentes formas de manifestação de dissenso aumentaram cada vez mais a frustração e a revolta, especialmente da classe média e dos setores populares pressionados pela deterioração dos serviços e pela crise econômica – ao mesmo tempo em que as promessas simbolizadas pelos grandes eventos (Copa e Olimpíadas) não se realizaram. Uma parte significativa das esquerdas, dentro e fora do governo, não foi capaz de escutar e muito menos renovar visões de mundo. Encantada com o reflexo da própria imagem no poder, a esquerda naufragou junto com o velho sistema político oligárquico ao qual acreditava se contrapor.

Uma nova geração de lideranças e movimentos de direita ganhou espaço e visibilidade. Muitos se identificaram com a onda de movimentos “alt-right” (extrema direita alternativa) que florescem mundo afora, especialmente na Europa e nos EUA. Um populismo ultraconservador profundamente marcado pelo racismo, machismo e fundamentalismo religioso foi capaz de consolidar uma narrativa que capitalizou um medo difuso e ofereceu como resposta a formação de uma identidade comum contra um outro ameaçador. O resultado das eleições presidenciais de 2018 demonstrou de maneira inequívoca que essas forças vieram disputar um lugar de destaque na configuração política brasileira.

Não é uma onda passageira. Aponta para uma renovação do velho conservadorismo que se sustenta no patriarcalismo racista e violento para manter o espantoso padrão de exclusão social e desigualdades que nos caracteriza. Como vimos em outros momentos, o velho foi mais rápido em se renovar para não mudar. E o que era novo envelheceu.

Por isso acredito que, por um lado, precisamos focar naquilo que deu certo para escapar da depressão do presente; e penso muito na Mari, assim como em tantas outras lideranças jovens que inspiram e respiram. Mas também reconhecer que os formatos conhecidos e consagrados das instituições e movimentos sociais que nos trouxeram até aqui precisam rapidamente ser atualizados ou mesmo superados. A demora em reconhecer isso já nos custou muito caro. Mas a história não terminou, aliás, está apenas começando. Entre o espanto e o choque precisamos recuperar a inspiração para imaginar o mundo a partir da clave da esperança e não da frustração. Eis o maior desafio que temos pela frente. Que a democracia resista e se fortaleça em 2019.

Átila Roque é historiador, ex-diretor da Anistia Internacional no Brasil e atual diretor da Fundação Ford no Brasil

✳︎ Artigo publicado originalmente na editoria Justiça do site da Carta Capital

Sueli Carneiro

Essa coletânea fala de um Brasil que persiste e se reinventa na luta contra o racismo. É a trajetória de uma mulher de luta, uma intelectual inquieta e generosa. Sueli Carneiro respira e inspira uma raiva sagrada que alimenta uma profunda paixão pela igualdade. Não esperem encontrar nesse livro paz e conforto. Os escritos de Sueli Carneiro vêm marcados profundamente pela afirmação de uma identidade e um protagonismo que convida a dialogar com ela sobre o nosso próprio lugar de privilégio. Percorrer as suas páginas nos leva a um mergulho em uma memória de lutas e realizações, coletivas e individuais, na qual a autora cumpre um papel histórico extraordinário. Não tenha dúvidas, Sueli Carneiro é uma das maiores intelectuais do Brasil e esse livro oferece uma janela privilegiada para se pensar o mundo a partir dos temas sobre os quais ela escreve com a profundidade e a leveza somente permitida a quem sabe que o caminho percorrido vem de longe. Sueli Carneiro nos convida a ser melhores do que somos. Mais do que isso, ela acredita que podemos ser melhores do somos. E por isso agradeço.

O Abate

A palavra tem poder. Sabemos disso desde que habitamos o mundo. Poetas e escritores jogam com esse poder a favor da beleza e das paixões. Articular sentimentos e desejos, participar do debate público, expressar pêsames e votos de felicidade, descrever e reinventar o mundo, narrar trajetórias e, principalmente, afirmar cores e identidades, estão entre os usos mais virtuosos das palavras.  A língua é minha pátria, ensina Caetano Veloso, poeta. Por isso devemos sempre estar atentos à sua degradação, especialmente na esfera pública. A degradação da palavra é um sinal de que nos aproximamos perigosamente da barbárie e da desumanização.

abate

Quando aceitamos como natural que certas palavras sejam retiradas do seu contexto original e comecem a fazer parte do debate a respeito de políticas públicas significa que já começamos a perder contato com o princípio fundamental da dignidade humana, acima de qualquer coisa. Por isso não posso deixar de me espantar com a entrada na discussão sobre uso da força letal por parte das polícias da palavra “abate” para se referir a execução imediata por agentes do estado de pessoas que supostamente oferecem risco pelo porte ostensivo de armas.

O fato em si dessa discussão acontecer com ares de normalidade na tv e nos jornais –  com falas de especialistas, juristas, supremos magistrados e futuro ministro da justiça – já deveria ser objeto de profundo desgosto e repúdio por parte da sociedade. Aplicar execução sumária fora de situações de guerra é uma clara violação da constituição brasileira que não prevê pena de morte e admite o uso da força letal apenas em situações extremas (ameaça imediata a vida). Usar “abate”, uma palavra aplicada pela indústria alimentícia para processos de execução de animais – o abate de bois e frangos nos frigoríficos da linha de produção do agronegócio –, no contexto da segurança pública é imoral e grotesco.

Demonstra o quanto estamos degradando a nossa humanidade comum e cedendo terreno cada vez mais extenso à barbárie. Desumanizar as vítimas é um primeiro passo para a liberalização definitiva do extermínio de jovens negros e pobres a pretexto de garantir uma segurança seletiva e ineficaz. Policiais, moradores de favela e jovens negros serão as vítimas principais de uma medida que apenas reforça a rotina de violência que marca profundamente a relação do estado com os territórios de periferias. Não esquecer que estamos entre os países onde mais a polícia mais mata e mais morre, sendo que raramente as mortes cometidas pela polícia chegam sequer a ser investigadas.

Somente no estado do Rio de Janeiro, as ações da polícia, especialmente nas favelas e territórios periféricos, já provocaram a morte de 916 pessoas, no período de janeiro a agosto de 2018. Entre elas crianças e moradores vitimados em meio a verdadeiras operações de guerra que reduzem áreas densamente povoadas a condição de territórios inimigos que devem pagar o preço necessário de uma pacificação à fórceps que destroça corpos negros e jovens.

Precisamos cuidar das políticas e das ações, mas precisamos também cuidar das palavras. É pelas palavras que a desumanização começa. A primeira pergunta que deveria estar sendo feita às autoridades e especialistas é se cabe ao estado falar em abate de seres humanos, a não ser que sejam anuladas completamente qualquer traço de humanidade. Vamos precisar aceitar que uns são menos humanos do que outros, reduzidos a uma condição inferior até mesmos aos animais de corte, pois sequer terão os seus despojos aproveitados para a produção de ração animal.

 

Abandono

"Sombras"(2014)
“Sombras”(2014) – André Hauck

Deitado na calçada, um menino. Uma CRIANÇA. Profundamente adormecido. Apagado. Podia ser consequência da fome, da cola ou, simplesmente, tristeza. Estava VIVO. Respirava. Notei. Uma criança NEGRA, largado no tempo, desamparado. Sozinho.

O sentimento de impotência foi devastador. Ainda tentei, timidamente, falar com ele, acordá-lo. Torci para que abrisse os olhos e ao menos soubesse que alguém tinha parado e visto que ele estava ali. Imaginei oferecer algum dinheiro para que fosse comer algo e beber uma água, um suco, um refrigerante. O sol estava forte, a calçada devia estar quente, ele devia estar com fome e sede, depois de um sono, um ABANDONO, tão profundo.

Mas ele não acordou.

Contemplei o menino por mais alguns instantes e segui meu caminho. “Estou atrasado”, pensei, tentando acalmar minha consciência, “não posso perder o voo”. Mas o menino não saiu da minha cabeça, ficou ali martelando.

A profundidade de seu sono é o retrato acabado de nossa desgraça: a normatização da INDIFERENÇA, o rebaixamento de nossa própria humanidade, uma sociedade cada vez mais desprovida de compaixão e solidariedade.

EU não fui capaz de fazer nada por ele (nem por tantos que cruzam o meu caminho todos os dias). Agora sinto essa tristeza profunda, envergonhada, inútil, flutuando no espaço. Com a certeza acachapante de que perdi a oportunidade de fazer a diferença no momento raro em que UM menino se fez visível no meu caminho.

(Escrito originalmente em 12/06/2015)

Minha vida entre livros

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Para Ana Paula Lisboa e Alexandre Roque

Sou apaixonado por livros. Não consigo imaginar uma vida sem livros ou uma casa sem estantes cheias de livros. Sinto conforto quando cercado por eles, desorganizados que sejam, empilhados ou mesmo empoeirados. Tenho a impressão que nasci gostando de livros, mesmo tendo crescido em uma casa praticamente sem livros. Meu pai e minha mãe não eram leitores. Pelo menos não tenho memórias deles lendo. Se bem que minha mãe sim tinha o cuidado de sempre ler e contar histórias para mim. E me impressionava muito mais pelas histórias que contava. Algumas verdadeiras histórias de terror infantil. Não sei se repetia ou inventava, mas nunca encontrei em livros aquelas histórias de terror, quase sempre envolvendo um macaco e uma onça – onde o macaco infligia verdadeiros horrores à coitada da onça.

Não tinha nada parecido com uma biblioteca em casa. As estantes eram para exibir objetos e bibelôs, talvez um ou outro livro acidental, alguma coleção ou exemplar de enciclopédia, mas nada que se parecesse com uma estante de livros de verdade.

Os primeiros livros que lembro foram os meus. Foram sendo colocados em minhas mãos desde muito cedo. Isso é importante. Mesmo não sendo leitores, meus pais alimentaram meus hábitos de leitura, dentro dos limites econômicos restritos de nossa família, tinha sempre um dinheirinho para comprar primeiro gibis, depois coleções e livros de bolso na banca de jornal perto de casa.

A primeira lembrança de leitura que trago não foi exatamente de leitura, mas de um desejo forte de leitura, quando ganhei de presente de uma prima uma caixa de papelão lotada de gibis. Eu ainda não sabia ler, mas passava muito tempo folheando os gibis daquela caixa, olhando as figuras, imaginando o que estavam dizendo as personagens, recriando na minha cabeça os diálogos que pendiam naqueles balões acima de cada um deles. Ainda hoje tenho impressão que as minhas ideias nascem em balões flutuantes acima da minha cabeça. Quando finalmente aprendi a ler devorei em tempo recorde aquela caixa de revistas em quadrinhos. Esse foi um dos maiores prazeres que lembro de ter experimentado na minha infância. Aquela caixa de papelão foi a minha primeira biblioteca.

A partir daí comecei a somar novos exemplares à minha coleção e a fonte inesgotável era a banca de jornal que ficava no quarteirão da minha casa, na esquina da Rua Barão com a Rua Marangá, na Praça Seca, Jacarepaguá. Costumo dizer que me transformei em leitor compulsivo graças a banca de jornal. Eu era aquela criança que passava boa parte do tempo sentado ao lado do jornaleiro, lendo ali mesmo, com a sua cumplicidade, os gibis expostos para a venda. Outras vezes, como lia muito rápido, comprava, levava para a casa, lia com o máximo de cuidado para não deixar marcas e voltava para trocar por outro. Os que gostava muito ficavam na minha coleção. Eram quase sempre gibis do Tio Patinhas, Pato Donald e sua turma, os super-heróis: Batman, Super-Homem, Homem Aranha, Nabor (o rei dos mares), Thor, Fantasma etc. A Turma da Mônica ainda não existia.

BMonfort

Dos gibis fui para os livros de bolso. Foi com eles que aprendi a ler sem figuras, texto corrido. Uma enormidade de histórias de aventuras, espionagem, faroestes e muitas outras. As capas de alguns eram sugestivas, com mulheres fatais e histórias recheadas de sexo e vilões mal-encarados. Infelizmente não sobrou nenhum desses exemplares para que eu pudesse relembrar as histórias.

Depois, sempre na banca de jornal, já adolescente, comecei a devorar as coleções da Editora Abril, tipo, “clássicos da literatura mundial”, através das quais, em edições condensadas ou completas, entrei em contato com Alexandre Dumas, Cervantes, Mark Twain e outros autores. Ainda guardo alguns desses exemplares, quase sempre de capas duras e bonitas. Eram caros para mim e já exigiam uma certa administração orçamentária da “semanada”. Como ainda não namorava, nem bebia, não tinha mesmo onde gastar.

(A minha diversão, fora a leitura, não custava nada ou quase nada: carrinho de rolimã, pipa, bicicleta e bola de gude, pique, taco e arco e flecha. Eu era um perigo com os arcos e flechas que fazia de bambu. Mas isso é outra história.)

A primeira coleção séria que ganhei foi da minha avó Izabel, mãe do meu pai. Ela tinha na casa dela uma coleção completa de Jorge Amado, sempre que eu ia lá ficava olhando, com os olhos gulosos. Um dia ela me deu a coleção de presente. Devorei, sem parar, um atrás do outro. Ainda hoje tenho essa coleção na minha estante, agora não mais completa porque Jorge Amado ainda era vivo e produtivo naquela época e continuou assim por um bom tempo depois daquele presente, mas eu nunca mais me animei a ler os novos romances, nem comprei nenhum. Mas li os essenciais, acredito.

A leitura acabou se tornando o hábito mais constante na minha vida, seguido de perto pela música. Nunca parei de ler. Um aprendizado sem nenhuma orientação ou método – nunca gostei das aulas de literatura no colégio, nem entendi bem as classificações de escolas e autores –  cheio de ausências de obras clássicas e essenciais muitas das quais até hoje não li.

Quando entrei na faculdade, no curso de História, no IFCS/UFRJ, mesmo tendo sido aquele adolescente leitor compulsivo, senti durante muito tempo uma estranha sensação de inferioridade. Os meus colegas de curso, oriundos das boas escolas privadas da Zona Sul, alguns de famílias letradas e politizadas, vinham lidos em uma infinidade de autores (quase sempre franceses e russos) que me eram desconhecidos. Hoje penso que esses autores não deveriam ser bem vistos pela ditadura e as editoras evitavam incluí-los nas coleções de banca de jornais, sei lá. Essa é única razão que encontro para nunca ter encontrado um Proust ou um Dostoievski nas coleções de banca de jornal. Ainda hoje, às vezes, tenho umas recaídas de inferioridade diante da sapiência e erudição desses intelectuais que conseguem falar com propriedade sobre uma infinidade de autores. Mas felizmente não dura muito.

Hoje, tanto tempo e tanta coisa depois de quando acessava o mundo através da banca de jornal, tenho muito orgulho da pequena biblioteca que possuo. Modesta se comparada a outras que conheço, mas um verdadeiro Eldorado de histórias, conhecimentos e sonhos, considerando o meu ponto de partida. Minha filha diz que essa é a parte da herança que lhe cabe. Esperta, sabe que não vai ter outro bem para almejar mesmo. Acúmulo de bens nunca foi meu forte. Já há algum tempo vem se antecipando e pegando “emprestado” alguns livros. Tenho que fazer missões de busca e apreensão no seu quarto toda a vez que sinto falta de algum título. Mas fico feliz em saber que essas estantes cheias ainda terão alguma importância depois que eu não estiver mais por aqui. Sinto pena das novas gerações que não contam mais com as coleções de banca de jornais, nem os livros de bolso. Devo quase tudo que sei a eles.

Na contra a corrente

Não faz meu estilo cultivar tristezas e desânimo, mas o desejo de vida tem me escapado pelos dedos, diante de um cenário tão desolador. O pulso ainda pulsa, mas confesso que senti fundo os últimos golpes. O assassinato brutal da Marielle, a ruína da política institucional, o autoritarismo quase fascista que perdeu a vergonha de mostrar a cara – pelo contrário, bate no peito com orgulho a professar suas intolerâncias –, a crise econômica que joga literalmente na rua da miséria milhões de pessoas e a persistência da violência simbólica e real que segue matando a juventude negra e das favelas, são algumas das feridas abertas que subtraem as minhas forças.

Mas não estou sozinho, pelo o que parece. Flávia de Oliveira, minha amiga mais otimista, sempre capaz de tirar alegria e força das pedreiras mais impenetráveis, fala do desânimo generalizado com a Copa em seu artigo no O Globo dessa semana. Ela usa uma palavra mais poética (e triste): desencanto. Estamos, como povo, menos dispostos a alegria. E parece que não vemos mais qualquer razão para cultivar aquela picardia alegre com a qual sempre fomos capazes de rir dos azares cotidianos, sacudir a poeira e seguir em frente. Nosso orgulho de ser brasileiros parece ferido de morte depois de tantas pancadas.

O psicanalista Contardo Caligaris, na Folha de São Paulo, vai mais fundo ao arriscar um diagnóstico de depressão do tipo “sociogênica”, coletiva. E a Organização Mundial da Saúde reforça o diagnóstico, apontando, em 2017,  o Brasil como o quinto país mais deprimido do mundo e o campeão absoluto em ansiedade. Somos 11,5 milhões de deprimidos, cerca de 5,8% da população. Só estamos menos deprimidos do que a Ucrânia (6,3%), EUA (5,9%), Austrália (5,9%) e Estônia (5,9%). Com isso vamos perdendo a capacidade de constituir uma esperança compartilhada no futuro da nação.

O risco maior em quadros sociais como o detectado por Flávia e Contardo é vermos avançar um estado de anomia generalizada que crava um sentimento difuso de solidão e abandono. Mais do que nunca precisamos buscar espaços de sociabilidade criativa, acolhimento afetivo e diálogo político verdadeiramente plurais e inclusivos. Romper as bolhas que represam nossa imaginação e circunscrevem nossas possibilidades de pensar outros caminhos individuais e coletivos. É preciso fazer de tudo para desatar a âncora que nos puxa para baixo e buscar o ar puro, o espaço aberto, o mar infinito capaz de alimentar o desejo de viver.

Uma vez, na adolescência, experimentei a experiência terrível do afogamento. Nadava bem, era abusado, e um dia cai em uma das armadilhas do mar. Pensei que não sairia vivo. Suei frio dentro d’água, nunca imaginei que isso era possível. Tenho a impressão que estamos, muitos de nós, vivendo uma experiência parecida. Um fundo de poço que parece não ter fim. Mas naquela tarde nublada, na Praia do Forte, em Cabo Frio, sozinho, encontrei forças para nadar para além da arrebentação, circunscrever a vala em que tinha caído, e nadar de volta à praia, onde fui socorrido pela mão de um amigo que não sabia nadar, mas que teve forças para me arrastar de volta para areia. Acho que é de uma força parecida que precisamos (preciso) hoje para romper com a barreira da arrebentação e, com certeza, muitas mãos amigas para caminharmos juntos de volta à praia.

O doce sabor do privilégio 



Estive recentemente em um desses clubes chiques a beira da Lagoa Rodrigo de Freitas. Era a minha primeira vez no clube. A impressão que senti após alguns momentos de circulação, mesmo sendo tratado com cortesia pelos funcionários, foi uma combinação de deslumbre e desconforto, como se a qualquer momento fosse ser desmascarado como alguém que não deveria estar ali. Mas o dia estava lindo, a vista convidativa e o calor ameno do sol matinal acariciava o meu rosto. Relaxei, sentei a beira da Lagoa, tirei umas fotos e saquei um livro para desfrutar algumas horas de leitura diante daquela paisagem deslumbrante. Mas o incômodo já tinha se instalado.

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Não consegui parar de pensar no desconforto inicial. O que tinha provocado esse sentimento de deslocamento? Afinal, não era a minha primeira vez em espaços de elite, estou bem acostumado a ser o único em certos ambientes. A vida me deu oportunidades de estar em espaços de poder e privilégio, onde normalmente pessoas com a minha origem, negro e suburbano, raramente chegam. E a posição que ocupo hoje, diretor de uma grande Fundação internacional privada, não apenas abre ainda mais o meu acesso a esses espaços de poder, como também requer um estado constante de alerta sobre o meu próprio lugar de privilégio.

Mas toda essa vivência não evitou a forte sensação de que estava invadindo um espaço onde não era convidado. Precisei parar e pensar um pouco sobre isso. Não tenho uma resposta, mas algumas aproximações.

Uma primeira ideia que me ocorreu foi constatar que aquele é um espaço de lazer reservado aos que compartilham uma ligação profunda de classe e raça/cor: um lugar de pessoas brancas de classe média alta e ricas ou detentoras de um capital social decorrente quase sempre de relações familiares. O meu desconforto era decorrente do fato de não me sentir possuidor daquilo que em inglês chamam de “entitlement” – o direito quase natural a um benefício ou reconhecimento. Certamente nem passa na cabeça das associadas daquele clube que elas não sejam merecedoras do que o espaço tem a oferecer de melhor: o privilégio de estar ali entre iguais.

Olhando em torno, durante as cerca de duas horas em que ali estive, não vi sequer um negro fora do lugar comum de prestador de serviço. A paz daquelas quadras de tênis e futebol, piscinas, os veleiros e pequenas lanchas estacionadas no hangar, a tranquilidade e a atmosfera despreocupada, sem nenhuma pressa, com a qual aquelas pessoas caminhavam pelas dependências do clube, era algo que remetia a uma intimidade quase familiar, constituída através dos laços indeléveis do privilégio. Esse foi um primeiro pensamento.

É muito bom ser rico e branco no Rio de Janeiro, mesmo estando, como estamos, no fundo do poço.

O segundo pensamento foi o quanto é difícil para as elites brancas, ricas ou de classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro abrir mão de seus privilégios. É muito bom ser rico e branco no Rio de Janeiro, mesmo estando, como estamos, no fundo do poço. Mesmo quando não se é muito rico, nem muito branco, desde que se alcance uma combinação favorável dessas duas condições, de modo a ser capaz de fazer parte dos círculos sociais protegidos em que vive a elite carioca. Sem falar que a vista é sem igual, especialmente quando se pode desfrutar dela em recantos exclusivos, resorts, clubes, condomínios e restaurantes de luxo, sem perturbações, perigos ou ruídos.

Tudo isso me levou a respirar fundo, já saindo do clube, e pensar que o caminho da igualdade passa por uma mudança somente possível com a ruptura dos espaços de privilégio por aqueles que até agora estiveram sentados a margem do banquete. O lugar do privilégio é muito confortável para que se queira deixá-lo voluntariamente. Ainda guardo na memória o que aconteceu quando de maneira muito modesta, mas extremamente significativa, se implantou a política de cotas, trazendo para o espaço da universidade pública uma população de jovens que até então não tinha o ensino superior no seu horizonte. A reação foi brutal e ainda hoje ouvimos os mesmos argumentos carcomidos de ressentimento sobre “racismo às avessas”, “mérito”, “rebaixamento da qualidade” etc.

É necessário a construção de um outro normal, mais diverso e inclusivo. Para isso é preciso abrir espaços para o protagonismo, a criatividade e a beleza da juventude das periferias e favelas. Escutar as vozes e demandas das jovens mulheres feministas que reinventam a ação política e a luta por direitos, obtendo conquistas inimagináveis há bem pouco tempo. Reconhecer os movimentos que reivindicam a cidade como território de todos, a ser desfrutado e ocupado por todos os atores sociais, na sua colorida diversidade. Abrir espaço para artistas e criadores negros ocuparem o seu lugar na mídia e nas artes, especialmente no campo do áudio visual (cinema, TV, internet), com suas narrativas e experiências, como autores, roteiristas, diretores, atores e curadores. Criar as condições para o florescimento do empreendedorismo popular, capaz de reinventar a economia local e produzir circuitos de produção solidária com enorme potencial de geração de riqueza. Qualquer um que já tenha se aproximado da vida econômica de uma grande favela sabe do que estou falando.

É preciso que o privilégio seja um lugar de desconforto e não de desfrute.

No entanto, nada disso virá apenas através de um movimento de conscientização dos que detém os privilégios, por mais importante que seja a construção de pontes e diálogos que aproximem mundos tão apartados. Eles terão que ser incentivados a abrir mão de tanto desfrute e conforto – ou pelo menos, digamos, compartilhar com um universo mais amplo de pessoas – pelo protagonismo e mobilização dos excluídos. Somente a participação ativa e a visibilidade desses novos atores sociais levará os que sempre estiveram protegidos pelos muros invisíveis da exclusão social a abrir espaço e reconhecer que não são os únicos a terem direito a ter direitos. É preciso que o privilégio seja um lugar de desconforto e não de desfrute. Esse é o nosso principal desafio se queremos superar as desigualdades que se nutrem do racismo, do sexismo e da violência que estruturam as relações sociais no Brasil.