A ruptura entre justiça e política no Brasil

nao penso logo existo
Artista – Alex Vallauri

A decisão da justiça de autorizar a escuta telefônica do ex-Presidente Lula (e por tabela da Presidenta Dilma) e, posteriormente, tornar pública as gravações jogou gasolina na crise e merece reflexão cuidadosa. 

Os acontecimentos dos últimos dias aumentaram a preocupação sobre o desenrolar da crise política brasileira, com a ampliação da Operação Lava Jato para um número de pessoas cada vez mais próximo da Presidente Dilma, com destaque do ex-Presidente Lula. E ainda com a inclusão de lideranças parlamentares ligadas ao governo e à oposição, como é caso do Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e, mais recentemente, do Senador Aécio Neves, citado da delação premiada do Senador Delcídio do Amaral.

A presunção da inocência tem sido comprometida, especialmente, pela maneira parcial e espetacular como a mídia tem abordado o tema. Essa é uma realidade já conhecida de jovens moradores das periferias e favelas das cidades, quase todos negros, sempre que se deparam com a polícia no seu caminho –  um encontro muitas vezes fatal, onde as vítimas são quase sempre tratadas a priori pela imprensa como culpadas e os homicídios cometidos pela polícia em operações oficiais classificados com “autos de resistência”.

O debate que vem ocorrendo no Brasil sobre as investigações de supostos crimes cometidos por políticos e empresários tem produzido muita fumaça e calor, sem ajudar a esclarecer e ponderar os acontecimentos (e suas consequências), deixando todos que tem um compromisso com o combate à corrupção em meio ao fogo cruzado dos apoiadores e defensores do governo. A decisão da justiça de autorizar a escuta telefônica do ex-Presidente Lula (e por tabela da Presidenta Dilma) e, posteriormente, tornar pública as gravações jogou gasolina na crise e merece reflexão cuidadosa.

Não podemos nos deixar levar – em nossos debates, acordos e divergências – pelo clima de heróis e vilões.  A relação de promiscuidade na apropriação de “bens públicos”  entre o mundo político e o dos negócios privados não foi inventada agora. É uma das principais bases da corrupção que envenena a confiança na democracia.

A transferência dos recursos públicos para grandes empresas privadas e, depois, para os partidos políticos, permaneceu inalterada no governo do PT,  assim como ocorrera nos governos do PSDB e do PMDB. O financiamento de campanhas (via doações legais, “caixa 2”, contas em paraísos fiscais etc.) é parte central desse esquema e vem sendo um dos principais temas das propostas de reforma política que nunca avançaram efetivamente no Congresso Nacional.

No entanto, é efetivamente muito grave a politização extrema da justiça  que estamos assistindo nos últimos dias. A divulgação das escutas dos telefonemas do Ex-Presidente Lula, por ordem de quem tinha o dever de preservar o sigilo, no momento e da forma como foi feito, independente de sua eventual legalidade ou ilegalidade, foi de uma violência política sem precedentes na história recente do país, um estratagema midiático, executado não por “forças ocultas”, mas ao contrário, por forças em busca  da visibilidade máxima. Sinal dos tempos em que visibilidade não significa necessariamente mais transparência democrática.

Corremos o risco de ver esvair entre nossos dedos a oportunidade de avançar no combate à corrupção, e acabar dando um passo atrás em direção ao velho e conhecido patrimonialismo clientelístico que sempre existiu no Brasil. Nunca foi tão essencial ler Raimundo Faoro (Os donos do poder) e Victor Nunes Leal (Coronelismo, enxada e voto).

Podemos acabar vendo acontecer o que sempre se fez no Brasil, a justiça a serviço da política, no velho estilo do coronelismo da república velha: aos amigos tudo, aos inimigos a lei. Espero sinceramente que a Lava a Jato volte aos trilhos e o juiz Moro ocupe o lugar de imparcialidade que se espera dele, embora o descarrilamento da política esteja em pleno curso, inclusive com um crescimento assustador da violência.

A sociedade civil precisa fazer tudo para evitar a paixão que cega e o ódio que produz a violência fundamentalista e buscar maneiras de reconstruir as pontes que nos permitam atravessar esse período de turbulências, sem perder o foco nos princípios fundamentais da democracia e da ética na política, sabendo que teremos muitas sacudidas pelo caminho.

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Artistas – Os Gemeos

Precisamos buscar inspiração e reinventar o Movimento Pela Ética na Política, mas agora também focado no sistema de justiça. Nada ganharemos em trocar políticos corruptos por juízes déspotas. Não nos deixemos iludir, a democracia não se constrói apenas com o grito rouco das ruas, por mais significante e importante que seja. A democracia é uma planta frágil que pode ser destruída pelos seus próprios meios se não nos mantivermos sempre fiéis aos seus princípios.  Como já nos ensinava  Betinho, quando, mal saídos da ditadura, lutamos pela construção e consolidação de uma ética democrática: o “popular” não é, necessariamente, sinônimo de democrático. Muitos confundiram esses dois conceitos na história da humanidade com resultados muitas vezes trágicos.

 

Autor: Atila Roque

Historiador e Cientista Político

3 comentários em “A ruptura entre justiça e política no Brasil”

  1. Enquanto concordo com o Átila, acredito que o caminho da construção democrática seja não linear e imprevisível. A chacoalhada causada pela divulgação dos diálogos representa, na minha opinião e independentemente de considerações sobre sua legalidade, uma contribuição positiva ao processo. O PT não inventou a falta de ética e a corrupção na política, mas levou-as a um nível de capilaridade que eu jamais havia visto nos meus 56 anos de brasileiro. Esperemos que o que estamos vendo seja o início de algo permanente.

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